Tomás responde: A dor da paixão de Cristo foi maior que todas as outras dores?

Giotto di Bondone, A Lamentação, Capella degli Scrovegni, 1304-1306

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Como se disse acima, ao tratarmos das deficiências assumidas por Cristo (q. 15, a. 5, 6), deve-se dizer que ele suportou uma autêntica dor; tanto sensível, causada por algo que fere o corpo, como interior, causada pela percepção do que é nocivo e que é chamada de tristeza. Ambas foram em Cristo as maiores dores na presente vida. E assim foi por quatro motivos.

Primeiro, pelas causas da dor. Pois a causa da dor sensível foi a lesão corporal, que se tornou pungente não só pela extensão do sofrimento, da qual se falou, mas também pelo gênero de sofrimento. É que a morte dos crucificados é muitíssimo cruel, pois são transfixados em locais de nervos muito sensíveis, ou seja, nas mãos e nos pés; o próprio peso do corpo suspenso aumenta continuamente a dor; e é uma dor que perdura, uma vez que o crucificado não morre logo, como os que são mortos pela espada. Já a causa da dor interior foi, em primeiro lugar, todos os pecados do gênero humano, pelos quais, sofrendo, Cristo dava satisfação, a ponto de, por assim dizer, assumi-los para si, como declara o Salmo 21: “As palavras das minhas faltas”. Em segundo lugar, especialmente a culpa dos judeus e dos demais que tramaram sua morte, mas de modo particular dos discípulos, que se escandalizaram com a paixão de Cristo. Em terceiro lugar, a perda da vida corporal, que por natureza é horrível à condição humana.

Segundo, a extensão do sofrimento pode ser considerada pela sensibilidade do paciente. Ora, ele tinha uma ótima compleição física, pois seu corpo fora formado de Leia mais deste post

O fim da Cristandade (II): A crise do espírito

Andrea Mantegna, São Jerônimo Penitente no Deserto (1448-1451), Museu de Arte de São Paulo – MASP

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A causa imediata desta crise deve ser procurada na história da cultura e no próprio papel que a Igreja assumira em relação a ela. Pedagoga da inteligência, a Mater Ecclesia tinha, como já vimos, ensinado os seus filhos a refletir, a aprofundar os grandes problemas, a construir sistemas do mundo; mas acontecia-lhe o mesmo que acontece à maior parte dos pedagogos, que vêem seus discípulos, já adultos, voarem com as suas próprias asas, muitas vezes em direções opostas àquelas que lhes foram designadas.A razão, que a própria Igreja ensinara a usar, tendia a rebelar-se contra os princípios a serviço dos quais fora posta inicialmente. O direito, que a Igreja tanto ajudara a reconstituir, opor-lhe-ia teses em que ela já não teria nenhum papel a desempenhar. Observava-se, portanto, em todos os terrenos um movimento de rebelião – embora continuassem a respeitar-se as formas exteriores da obediência. E muitas forças novas da época cooperavam com esse movimento: as dos orgulhosos burgueses, cujas riquezas os impeliam a presumir de ateus vociferantes (esprits forts), e as das jovens monarquias, que não conseguiam satisfazer as suas ambições sob a incômoda tutela da Igreja.

O perigo poderia ter sido ultrapassado, como outros o tinham sido, se a Igreja, no dobrar dos anos 1300, tivesse contado no seu seio com cérebros bastante poderosos para arrostar as forças antagonistas, rebater os argumentos dos adversários e integrar o que neles podia existir de válido numa nova síntese cristã. Infelizmente, também neste domínio a seiva parecia escassa. A ausência de um São Tomás de Aquino Leia mais deste post

O fim da Cristandade (I): Uma intensa e dolorosa fermentação

Gustave Doré, Canto XIX da Divina Comedia, Inferno (simonia), de Dante Alighieri. Cena: Dante se dirige ao Papa Nicolau III (clique para ampliar)

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Estava a Igreja fatigada pelos esforços que fizera para manter e reforçar a sua autoridade no Ocidente? Tinha esgotado a sua seiva ao multiplicar os grandes empreendimentos? Seja como for, era visível em todos os terrenos que o seu impulso interior já não era o de antes e que havia menos vibração, menos fervor. Bastava olhar em volta para comprová-lo.

Não era só o papado que estava em causa, embora os pontífices se sucedessem, há bastante tempo, a um ritmo demasiado rápido para poderem ser eficazes, e embora as vacâncias da Santa Sé se prolongassem de forma inquietante (dez anos de vacância entre 1241 e 1305), e em breve o papado se transferisse de Roma para Avinhão. A cruzada pertencia agora ao passado; tanto sangue derramado não tinha evitado que o Santo Sepulcro permanecesse em poder dos infiéis. Em 1291, caía São João d’Acre. O zelo dos construtores de catedrais declinava; continuava-se a trabalhar para concluir grandes obras em andamento, mas já não era com o Leia mais deste post

Uma arte oratória bem sucedida: a pregação

O púlpito de Siena, feito em mármore de Carrara, foi esculpido em 1265, por Nicola Pisano e seu filho, Giovanni Pisano, bem como seus assistentes Arnolfo di Cambio, Lapo di Ricevuto e vários outros artistas. É a obra mais antiga da igreja. Nicola Pisano ganhou essa encomenda a partir de seu trabalho no púlpito de Pisa. Esse em Siena é mais ambicioso e é considerado sua obra-prima. Toda a mensagem do púlpito é centrada na doutrina da Salvação e no Julgamento Final. A escadaria foi feita em 1543 por Bartolomea Neroni. Mostra as influência do Gótico do norte, adaptados por Pisano, e ainda várias influências clássicas.
O chão em opus sectile é um dos mais decorados da Itália e cobre toda a área da Catedral. Sua construção durou dois séculos e quarenta artistas trabalharam na obra. São 56 painéis em diferentes tamanhos. O chão inteiro pode ser visto apenas durante três semanas ao ano. Para o proteger, no resto do ano, o pavimento é coberto e poucas áreas podem ser vistas.

Como é que a Igreja difunde as grandes noções dogmáticas que estão na base destas devoções, os dados da Escritura e da hagiografia? Essencialmente, pela pregação, cuja importância na época só compreenderemos se abstrairmos dos nossos hábitos modernos. Hoje, cada um de nós tem à sua disposição numerosos e cômodos meios de informação e entretenimento, mas devemos lembrar-nos de que na Idade Média não existiam jornais, nem rádio, nem televisão, nem cinema, nem reuniões políticas. Tudo isso, que absorve muito tempo e atenção dos nossos contemporâneos, era substituído naquela época pelas Leia mais deste post

Quatro características da religião medieval

Missal Weingarten, iluminura sobre pergaminho, cerca de 1210, 29,2×20,3 cm, Pierpoint Morgan Library, NY

A religião cristã, por muito fiel que seja a si própria e por mais unida que esteja à sua Tradição, adquire, no entanto, matizes peculiares de acordo com cada época. Hoje, no catolicismo francês, enfatiza-se mais o aspecto social do Credo, o necessário retorno às fontes bíblicas e patrísticas, e um conhecimento mais profundo da liturgia. Durante os grandes séculos medievais, observam-se também algumas características, quatro das quais mais acentuadas.

A primeira e a mais essencial é o caráter profundamente escriturístico da vida religiosa. A Sagrada Escritura, a Bíblia, é sem dúvida alguma conhecida pela generalidade dos homens, ao menos por alto. Nos conventos e nas universidades lêem-se muitos outros textos, especialmente os dos Padres da Igreja e em particular Santo Agostinho, mas o que o conjunto dos fiéis conhece é o Leia mais deste post

São Domingos, atleta e construtor de Deus

Fra Angelico, Domingos de Gusmão

Enquanto o “Poverello” travava a luta heróica de uma vida orientada contra as obras do dinheiro, outro homem combatia o segundo perigo que ameaçava a Igreja, o perigo da facilidade, da rotina intelectual, da ignorância, que entregava a fé aos desvios doutrinais. A sua obra acabaria por suscitar um clero capaz de lutar com armas iguais contra os adversários da verdade. Mas esta Ordem não devia nascer de um desígnio a priori, de uma idéia abstrata: surgiu, como a maior parte das instituições da Igreja, da providencial necessidade.

Num dia de verão de 1205, apresentou-se diante de Inocêncio III o bispo da modesta diocese espanhola de Osma, D. Diogo ou Didácio de Azevedo. Viajava há dois anos, encarregado por Afonso VIII de Castela de trazer da Dinamarca uma noiva para o Infante herdeiro. Mas como a jovem princesa Leia mais deste post

Bibliotecas e copistas

Breviário de Belleville, 1323-1326

No seu esforço de salvaguarda intelectual, o que a Igreja ensinou em primeiro lugar à humanidade foi o respeito pelo livro. Amava-se, venerava-se e rodeava-se de zelosos cuidados esse pesado caderno de pergaminho que continha a palavra de Deus ou de um de seus fiéis, e que, aliás, era raro e custava caro: uma biblioteca de 900 manuscritos era considerada imensa e causava espanto. “Morre desonrado quem não ama os livros”, dizia um provérbio; e “um claustro sem livros é um castelo sem arsenal”, dizia São Bernardo. As preciosas obras andavam de convento em convento, para que pudessem ser copiadas, e, no período negro das invasões normandas, a perda das bibliotecas era um dos desastres mais cruelmente sentidos.

A imagem do monge copista, debruçado sobre a sua escrivaninha ao longo de toda a jornada, caligrafando ou iluminando as páginas de um Evangelho ou um Saltério, é uma daquelas Leia mais deste post

A escultura, filha da arquitetura

Veja também: A arquitetura gótica e A arquitetura românica
Catedral de Chartres, esculturas do coro, O Massacre dos Inocentes

(clique nas fotos para ampliá-las e observar os detalhes)

A genialidade: a arquitetura não foi a única a prestar-lhe o mais glorificante testemunho. No seu arrebatamento, atraiu todas as outras artes, como uma mãe guia e atrai os seus filhos. E, em primeiro lugar, a escultura, também uma técnica da pedra e da madeira, à qual tem andado associada desde sempre.

Neste domínio, o esforço de renascença era mais difícil de realizar, porque devia partir de mais baixo, quase do nada, para dizer a verdade. A derrocada dos tempos bárbaros tinha, numa certa medida, respeitado a arquitetura, porque o homem não pode passar sem casas, nem o cristão sem igrejas. Mas a plástica, mais ou menos suspeita de paganismo, tinha desaparecido quase por completo. Durante séculos, Leia mais deste post

Bizâncio cismática caminha para a queda (II)

Conquista de Constantinopla pelo Cruzados em 1204 – Séc. XIII
Clique aqui para ler a parte I

A anarquia feudal alcança Bizâncio

O período que se seguiu ao cisma foi, para Bizâncio, um dos piores da sua história. Enquanto os basileus se sucediam rapidamente no trono – treze em quarenta anos -, terminando quase sempre o seu reinado por uma abdicação precipitada, quando não no meio de suplícios, desenrolava-se um drama interior em que estava em jogo a vida do Império, Havia muito tempo que se vinham manifestando as ambições da aristocracia militar e o sistema feudal surgia também no Oriente. Chefes de guerra e grandes administradores tinham um único desejo: tornarem-se proprietários dos domínios confiados à sua guarda. Os imperadores macedônios tinham sido bastante fortes para lhes imporem uma barreira, mas, quando os seus herdeiros fraquejaram, vieram a revolta, a guerra civil e a anarquia.

Durante vinte e cinco anos, os verdadeiros condutores do jogo foram esses aristocratas poderosos e cobertos de glória que, tendo desempenhado um papel Leia mais deste post

A arquitetura gótica

Veja também: A arquitetura românica

Notre-Dame de Paris, interior
(clique nas imagens para ampliar)

A todo aquele que permaneça de pé em alguma das grandes naves góticas e se deixa penetrar pelo ambiente do lugar, impõem-se simultaneamente duas impressões: sensações físicas e emoções espirituais. Ninguém pode furtar-se a sentir a poderosa sugestão que se desprende das linhas em ascensão vertical, a penetração e o envolvimento da luminosidade. Ao contrário da basílica romana, curvada sobre o chão, fortemente concentrada em si mesma e apoiada nas suas bases, a catedral gótica é um edifício ereto, uma igreja de pé. Ao contrário da pesada abóbada em semicírculo, que requer excessiva espessura das paredes, estreita as janelas e enche de sombra a nave à medida que esta se expande, a técnica gótica chama com veemência a luz e entrega-lhe todo o edifício para que o atravesse e ali se estabeleça. Os dois traços característicos que os nossos sentidos reconhecem na catedral gótica têm as suas correspondências instantâneas na alma. Alguma coisa se exalta nela quando se sente Leia mais deste post

Bizâncio cismática caminha para a queda (I)

Abraço entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras I
Clique aqui para ler a PARTE II

No dia seguinte ao cisma

Enquanto o Ocidente levantava o monumento de uma das civilizações mais fecundas que já existiram, era bem diferente o espetáculo oferecido pelo Oriente. Não que Bizâncio tivesse deixado de ser a Bizâncio que herdara as glórias de Teodósio e Justiniano, o baluarte de muralhas e de códigos que enfrentara a barbárie desordenada, a capital econômica, espiritual e ao mesmo tempo política em que palpitava o coração do mundo mediterrâneo. Mas, embora ainda digno de admiração e respeito sob muitos aspectos, o vasto Império que a dinastia macedônia acabava de dirigir com pulso tão firme já não dava, em meados do século XI, a impressão de possuir uma vitalidade profunda. O grande navio seguia o seu curso sacudido por inúmeras tempestades: o passado seria, por si só, capaz de garantir o futuro?

Um acontecimento capital acabava de abater-se pesadamente sobre o seu destino: o Cisma de 1054. O lento desentendimento que se insinuara no decorrer dos séculos entre as duas metades da Igreja tinha múltiplas causas: evolução diferente dos ritos e práticas, mais fixos e uniformes no Oriente, mais variados no Ocidente; desacordos teológicos cuja importância os dois campos aumentavam Leia mais deste post

A arquitetura românica

Veja também: A arquitetura gótica

Catedral de Santiago de Compostela

(clique nas imagens para ampliar)

Das mãos fecundas dos mestres-de-obras saíram formas cuja história constitui talvez o capítulo mais apaixonante de toda a história da arte. No entanto, para o historiador da Igreja, será indiferente descrever os templos onde os fiéis da Idade Média oravam e os aspectos de que a casa de Deus se revestia para eles? Lembremo-nos de que são numerosas as que ainda hoje nos abrigam, e as nossas orações sobem muitas vezes até as mesmas abóbadas que ouviram rezar os cristãos do tempo de São Bernardo e São Luís.

No dobrar do ano mil, saindo da crisálida carolíngia, espalhara-se por quase todas as terras outrora governadas pelo grande imperador um estilo arquitetônico bem característico. Não era em nada uma arte “primitiva”, mas, pelo contrário, uma arte repleta de reminiscências, em que se acentuavam Leia mais deste post

O apogeu da Escolástica: São Tomás de Aquino

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No coração do céu, onde reinam as Três Pessoas, ladeado por Aristóteles e Platão, tendo a seus pés Averróis vencido, enquanto um concílio reunido reconhece a sua grandeza, o corpulento dominicano, com a vista tão fixa que parece não ter olhares senão para o interior, meditativo, plana no tempo e no espaço. Foi assim que Benozzo Gozzoli o representou no célebre quadro do Louvre, e é também assim que a história da Igreja o pode representar.

Entre os estudantes que, no ano de 1248, seguiam os cursos de Alberto Magno no Studium dominicano de Colônia, não se fazia notar – a não ser pelas suas dimensões físicas – um rapaz enorme, de rosto plácido, que parecia ruminar sem parar não se sabe que ausência de pensamento. Os condiscípulos chamavam-lhe o “boi mudo”, a tal ponto a sua grande calma e a sua espantosa capacidade de ficar em silêncio lhes parecia estúpidas. Mas quando, por acaso, numa discussão, esse rochedo se movia, era para esmagar, com dez Leia mais deste post

Um cristão leigo: São Luís

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Viver sob o olhar de Deus: eis o ideal que a Igreja prescreveu à sociedade medieval através de tantas dificuldades e obstáculos. E houve homens e mulheres que, sem deixarem o mundo e sem entrarem nos quadros da clerezia, souberam praticá-lo com uma sublime perfeição. Se queremos penetrar nas lições de exemplo que nos dão estes santos leigos, basta-nos considerar o mais representativo, o príncipe que, de 1226 a 1270, ocupou – e com que soberana grandeza! – o trono da França: Luís, nono de nome, que, para a história, será sempre São Luís. Nele culminam e se realizam todas as virtudes que mil e duzentos anos de cristianismo fizeram germinar no homem. Ele domina e ilumina a sua época, a ponto de falsear um pouco a perspectiva e beneficiar com os seus méritos todo o século XIII, que, no entanto, foi menos cristão que o século XII. Aos olhos da posteridade, São Luís não se tornou somente o tipo ideal de homem que a Idade Média concebeu, mas também Leia mais deste post

Um povo que caminha: as peregrinações

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No tímpano de Autun, na cena do Juízo Final, todos os mortos saem do túmulo nus como Adão, exceto dois peregrinos que trazem aos ombros as suas sacolas de mantimentos, uma delas marcada com a cruz da Terra Santa e a outra com a concha de Santiago. Sob a proteção desses emblemas, pode-se enfrentar o julgamento de Deus.

Todos vão ou desejam ir em peregrinação, sejam grandes ou humildes, prelados ou príncipes, artesãos ou lavradores. Nessa enorme multidão, vestida com o mesmo hábito tradicional, as classes confundem-se fraternalmente. Há também peregrinos de todas as idades, desde crianças de doze anos até octogenários, todos eles percorrendo penosas etapas. Aguardam-nos dificuldades e perigos sem conta. Em princípio, o caráter sagrado da marcha deveria protegê-los, mas são atacados por salteadores sem fé. A longa caminhada a pé, o cansaço e o frio são rudes penitências. Não há dúvida de que existem cristãos generosos que abrem aos romeiros a sua casa e a sua mesa, chegando a matar Leia mais deste post