Fragmentos: A lei do Espírito

“Toda coisa parece ser aquilo que nela é principal”, diz o Filósofo no livro IX da Ética. Aquilo que é principal na lei do Novo Testamento, e em que toda a virtude dela consiste, é a graça do Espírito Santo, que é dada pela fé em Cristo. E assim principalmente a lei nova é a própria graça do Espírito Santo, que é dada aos fiéis de Cristo. … O que faz dizer Santo Agostinho em sua obra Sobre o Espírito e a Letra … (XXI, 36): “O que são as leis de Deus escritas pelo mesmo Deus nos corações senão a própria presença do Espírito Santo?” … Deve-se, pois, dizer que principalmente a lei nova é lei infusa, mas que, secundariamente, ela é lei escrita.

Suma Teológica I-II, q.106, a.1

Deve-se saber que se apoiando nestas palavras: “Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade”, assim como nas palavras seguintes: “Para o justo não há lei” (1Tm 1, 9), alguns ensinaram falsamente que os homens espirituais não estão submetidos aos preceitos da lei divina. O que é falso, porque os mandamentos de Deus são a regra do agir humano. …

O que foi dito do “justo para o qual não há lei”, deve-se compreender assim: não foi para os justos, que são movidos do interior às coisas que a lei de Deus prescreve, que a lei foi promulgada, mas para os injustos, sem que por essa razão os justos não sejam obrigados à lei.

Igualmente, “Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” deve-se compreender assim: é livre aquele que dispõe de si mesmo (líber est qui est causa sui), enquanto o servo (servus) depende de seu senhor. Aquele, pois, que age por si mesmo age livremente, mas aquele que age sob o impulso de outro não age livremente. Assim, aquele que evita o mal não porque é mal, mas por causa do mandamento de Deus, este não é Leia mais deste post

Fragmentos: A lei da caridade

Manifestamente, todos não podem passar o seu tempo em trabalhosos estudos. Cristo nos deu uma lei cuja brevidade a torna acessível a todos, e assim ninguém tem o direito de ignorá-la: esta é a lei do amor divino, esta “palavra breve” que o Senhor declara ao universo.

Esta lei, reconheçamos, deve ser a regra de todos os atos humanos. A obra de arte obedece a cânones. Igualmente o ato humano, justo e virtuoso quando segue as normas da caridade, perde sua retidão e sua perfeição se ele vem a se afastar delas. Eis, pois, o princípio de todo bem: a lei do amor. Mas ela traz consigo muitas outras vantagens.

Em primeiro lugar ela é fonte de vida espiritual. É um fato natural e manifesto que o coração amante é habitado pelo que ele ama. Quem ama Deus o possui em si. “Quem permanece na caridade permanece em Deus e Deus nele” (Jo 4, 16). E tal é a natureza do amor que ele transforma no ser amado. Se amarmos coisas vis e passageiras nos tornaremos vis e instáveis, se amarmos Deus seremos totalmente divinos: “Quem se une ao Senhor é o mesmo espírito com ele” (1Cor 6, 17). Santo Agostinho assegura: “Deus é a vida da alma, como esta o é do corpo que ela anima” … Sem a caridade ela não age mais: “Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3, 14). Se tiverdes todos os carismas do Espírito Santo, sem a caridade estareis Leia mais deste post

Fragmentos – Espírito Santo: amor, amizade, comunhão e perdão

 

Dado que o Espírito Santo procede por modo de amor, do amor pelo qual Deus ama …, e do fato de que amando Deus nós nos assemelhamos a esse amor, dizemos que o Espírito Santo nos é dado por Deus. Por isso o Apóstolo afirma: “O amor de Deus foi espalhado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5).

Suma contra os gentios IV 21, n. 3575

 

Por toda a parte onde há obra de Deus, deus deve aí se encontrar a título de autor. Dado que a caridade pela qual amamos Deus se encontra em nós pelo Espírito Santo, é necessário que o Espírito Santo permaneça em nós tão longamente enquanto temos a caridade. Por isso o Apóstolo perguntava (1Cor 3, 16): “Não sabeis que sois o templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?” Dado que é pelo Espírito Santo que nos tornamos amigos de Deus e que o ser amado, em sua qualidade justamente de ser amado, está presente naquele que o ama, é necessário que o Pai e o Filho habitem também em nós pelo Espírito Santo. É o que diz o Senhor em São João (14, 23): “Viremos a ele e faremos nele nossa morada”; e ainda (1Jo 3, 16): “Sabemos que ele permanece em nós graças ao Espírito que ele nos deu”.

Suma contra os gentios 20, n. 3576

 

É manifesto que Deus ama no mais alto grau aqueles que ele fez seus amigos pelo Espírito Santo; somente um tão grande amor podia conferir um tal bem. … Ora, uma vez que todo ser amado habita naquele que o ama, é necessário que pelo Espírito Santo não somente Leia mais deste post

Os frutos do Espírito

Fra Angelico, Tomás com a Suma, Museu Nacional de São Marcos, Florença

Após ter falado dos dons, santo Tomás acrescenta ainda duas outras questões, verdadeiramente surpreendentes para quem esperaria apenas uma simples descrição de estruturas mentais, mas que não são feitas para nos surpreender, uma vez que sabemos que ele é um leitor assíduo da Escritura. Plenamente consciente do fato de que “o Sermão da Montanha contém o programa completo da vida cristã” (ST I-II q.108 a.3), ele se interroga sobre o que são as bem-aventuranças das quais o Senhor fala nos evangelhos (Mt 5, 3-12; Lc 6, 20-26), e sobre o que São Paulo denomina “os frutos do Espírito” (Gl 5, 22-23; ST I-II q.69-70). A aproximação não é arbitrária, porque há mais de um ponto comum entre frutos e bem-aventuranças, e a união com o Espírito Santo é evidente a partir do momento em que se percebe que tudo isso tem suas raízes nele como em sua fonte. Muito pouco lidas, porque se tende a considerá-las secundárias num movimento de conjunto da Suma, as duas questões são, ao contrário, apreciadas pelos melhores teólogos moralistas de hoje. Eles vêem aí de bom grado “um programa de vida e de progresso espiritual” e se inspiram para “traçar um retrato do homem espiritual”.

A lista das bem-aventuranças não tem necessidade de ser aqui lembrada, mas talvez seja útil recordar os doze frutos do Espírito tais como Tomás os encontrava no latim da Vulgata: caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, mansidão, fé, modéstia, continência, castidade (não se encontrará no grego do Novo Testamento a integralidade desta lista, da qual se conhecem apenas nove elementos). Para compreender de que se trata, deve-se saber que, em relação às virtudes e aos dons, as bem-aventuranças e os frutos não representam novas categorias de habitus, mas simplesmente os atos que deles provêm:

A palavra fruto foi transferida das coisas materiais para as espirituais. Na ordem material, chama-se fruto o que a planta produz ao atingir seu pleno desenvolvimento e traz em si certa suavidade. Nesse sentido, o fruto tem dupla relação com a árvore que o produz e com o homem que dela colhe. Assim, pois, podemos entender a palavra fruto nas coisas espirituais de dois modos: primeiro, diz-se fruto do homem, como da árvore, o que é produzido por ele; segundo, diz-se fruto do homem o que o homem colhe.

(ST I-II q.70 a.1)

 

Esta simples apresentação do vocabulário permite um primeiro esclarecimento. Se se pensa naquilo que é produzido pelo homem, é claro que são os atos humanos que levam o nome de frutos. Se eles estão de acordo com a capacidade da razão, são frutos da Leia mais deste post

Espírito Santo, o vínculo do amor (o Filioque)

Rubens, Anunciação (1628)

Seguindo Santo Agostinho, que realizou nesse campo uma obra inovadora e marcou com seu gênio toda a reflexão trinitária latina – distinguindo-se da tradição grega, que tomou outra via -, os teólogos da Idade Média ocidental gostavam de falar do Espírito Santo como do amor mútuo pelo qual o Pai e o Filho se amam entre si. Para Agostinho, o Espírito Santo é “a unidade das duas outras Pessoas, ou sua santidade ou seu amor”; e isso o é pessoalmente, com efeito, “que ele seja sua unidade porque é o seu amor, e seu amor porque ele é sua santidade, é claro que não é nenhuma das duas primeiras Pessoas, nas quais se operaria sua união mútua”. Não se saberia nomear melhor a não ser a partir da obra que ele realiza:

Se a caridade pela qual o Pai ama o Filho e pela qual o Filho ama o Pai nos revela a inefável comunhão de um com o outro, não seria de todo indicado atribuir como próprio o nome de Caridade ao Espírito comum do Pai e do Filho?

(De Trinitate XV 19,37)

Tomás não faz exceção a esta unanimidade e em sua primeira obra desenvolve o tema com certa complacência:

Se o Espírito Santo procede como amor, pertence-lhe ser a união do Pai e do Filho (unio Patris et Filii) em razão dessa maneira própria de proceder. Pode-se, com efeito, considerar o Pai e o Filho seja segundo eles pertençam à mesma essência, e eles são unidos assim na essência, seja segundo sejam pessoalmente distintos, e então eles são unidos pela convergência do amor (per consonantiam amoris); se se supusesse por impossível que eles não estão unidos por essência, seria necessário ainda admitir entre eles uma união de amor a fim de que sua alegria seja perfeita.

(Sent. I d. 10 q.1 a.3)

Nessa perspectiva, o Espírito é, pois, um ato de amor subsistente, que o Pai e o Filho emitem em comum, o ato pelo qual se amam reciprocamente e que os une à maneira tendencial e estática pela qual o amor une o amante ao amado. A profunda beleza dessa visão das coisas explica a sedução que ela exerceu e continua a exercer nos espíritos. Mas tem o inconveniente de Leia mais deste post

Fragmentos: A amizade com Deus

O que é próprio, por excelência, da amizade é viver na intimidade de seu amigo. Ora, a amizade do homem com Deus se realiza na contemplação de Deus, segundo o apóstolo dizia aos Filipenses (3, 20): “Nossa cidade se encontra nos céus”. Se é o Espírito Santo que nos torna amigos de Deus, é normal que seja ele que nos constitua contemplativos de Deus. Por isso o Apóstolo diz ainda (2Cor 3, 18): “Quanto a nós todos que contemplamos a glória de Deus com o rosto descoberto, seremos transformados de claridade em claridade nesta mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor”.

É próprio da amizade alegrar-se com a presença de seu amigo, encontrar sua alegria em sua palavra e em seus gestos, procurar nele o conforto em todas as inquietações; também nos momentos de tristeza procuramos refúgio e consolação sobretudo perto dos amigos. Ora, acaba-se de dizer, é o Espírito Santo que nos constitui amigos de Deus e o faz habitar em nós e nós nele; é pois normal que seja pelo Espírito Santo que nos venha a alegria de Deus e a consolação diante de todas as adversidades e assaltos do mundo. O Salmo (50, 14) diz: “Dá-me a alegria de tua salvação e que teu Espírito generoso me confirme”. São Paulo (Rm 14, 17) afirma que “o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo” … e o Senhor fala do Espírito Santo como sendo o “Paráclito”, isto é, o Consolador (Jo 14, 26).

Outra propriedade da amizade é concordar sua vontade com a de seu amigo. Ora, a vontade de Deus nos é manifestada por seus mandamentos. Cabe, pois, ao amor que temos por Deus o cumprimento dos seus mandamentos: “se me amais, guardai meus mandamentos” (Jo 14, 15). Uma vez que é o Espírito Santo que nos faz de Deus, é ele ainda que nos impele, por assim dizer, a cumprir os mandamentos de Deus, segundo a palavra do Apóstolo (Rm 8, 14): “São filhos de Deus aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus”.

Deve-se observar que os filhos de Deus não são movidos pelo Espírito Santo como os escravos, mas como homens livres. Se o homem livre é “aquele que é senhor de si mesmo” (Aristóteles), nós fazemos livremente o que realizamos por nós mesmos, isto é, por nossa vontade. O que faríamos contra nossa vontade não seria livremente, mas servilmente executado. O Espírito Santo, ao fazer de nós amigos de Deus, nos inclina a agir de tal modo que nossa ação seja voluntária. Filhos de Deus que somos, o Espírito Santo nos concede agir livremente, por amor, e não servilmente, por temos. É o que diz o apóstolo (Rm 8, 15): “Não é um espírito de servidão que recebestes, para viver de novo no temor, mas o Espírito de adoção dos filhos”.

(Suma contra os gentios IV 22, n. 3585-3588)

 

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Fragmentos: O Espírito que cria, move e governa

O amor pelo qual Deus ama sua própria bondade é a causa da criação das coisas… Ora, o Espírito Santo procede por modo de amor, do amor pelo qual Deus ama a si mesmo. O Espírito Santo é, portanto, o princípio da criação das coisas. É o que diz o Salmo (103, 30): “Envia teu Espírito, e elas serão criadas”.

O Espírito Santo procede por modo de amor, e o amor é dotado de certa força de impulsão e de movimento. É preciso, pois, atribuir como próprio ao Espírito Santo o movimento que Deus comunica às coisas. Santo Agostinho quer que se veja nas “águas” a matéria primeira sobre a qual o Espírito do Senhor se diz planar, não como sujeito, mas como princípio de movimento.

[Com efeito,] o governo das coisas por Deus deve se entender como certa moção segundo a qual Deus dirige e põe em movimento todos os seres em direção a seus fins próprios. Se, pois, o impulso e o movimento são, em razão do amor, fato do Espírito Santo, convém (convenienter) atribuir-lhe o governo e o desenvolvimento dos seres. Por isso se diz no Livro de Jó (33, 4): “É, o Espírito me fez”, e no Salmo (142, 10): “Teu Espírito bom me conduz sobre uma terra unida”. E, uma vez que governar sujeitos é o ato próprio de um senhor, convém (convenienter) atribuir a Senhoria ao Espírito Santo. “O Espírito é Senhor”, diz o Apóstolo (2Cor 3, 17); e igualmente o Símbolo: “o Espírito Santo é Senhor”.

É sobretudo o movimento que manifesta a vida… Se pois, em razão do amor, o impulso e o movimento pertencem ao Espírito Santo, convém atribuir-lhe a vida. “É o Espírito que dá a vida”, diz são João (6, 64); o mesmo Ezequiel (37, 6): “Eu vos darei o Espírito e vivereis”. E no Credo confessamos o Espírito “que dá a vida”. O que, aliás, é conforme ao próprio nome de Espírito (Spiritus = sopro): é o sopro vital espalhado desde o começo em todos os membros que assegura a vida corporal dos seres vivos.

(Suma contra os gentios 20, n. 3570-3574)

 

 

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