Mário Ferreira dos Santos e as cinco vias de Santo Tomás de Aquino

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Esta é, sem dúvida, a melhor explicação das cinco vias de Santo Tomás de Aquino que já li. Boa leitura!

 

Artigo tirado do site “Contra os Acadêmicos

As Cinco Vias de Tomás de Aquino explicada por Mário Ferreira dos Santos: uma apreciação definitiva.

 

Retirado do livro “O Homem Perante o Infinito”.

DAS PROVAS A POSTERIORI — AS CINCO “VIAS” DE TOMÁS DE AQUINO

Os argumentos a posteriori da existência de Deus — os que partem de fatos da experiência e não apenas de noções, e que se apoiam no princípio de razão suficiente — são clas­sificados em:

  1. a) Provas cosmológicas;
  2. b) Provas psicológicas;
  3. c) Provas morais.

As provas cosmológicas fundam-se nos fatos de experiên­cia externa, por meio da qual conhecemos o mundo exterior, É sobre tais fatos que Tomás de Aquino construiu suas pro­vas, através de cinco vias.

Como se trata aqui de matéria que merece uma exposição cuidadosa e a mais fundada nos textos, reproduzimos a seguir os comentários prévios apresentados por Muniz a tais provas.

“Toda via para demonstrar a existência de Deus constará de um ponto de partida, do ímpeto nas coisas criadas; de um recorrido ou ponto, que não pode ser outro que a causalidade extrínseca, e de um termo de chegada, que é a causa, Deus.

O ponto de partida é sempre um efeito sensível, manifesto, um fato de experiência certo: a existência do movimento, a subordinação de causas eficientes, a contingência dos seres sen­síveis, a gradação de perfeiçoes transcendentais, e a ordenação a um fim. Como destes fatos de experiência pode a razão elevar-se a Deus?

O primeiro passo que tem que dar a razão é demonstrar que tais fatos entranham a condição de efeitos: que são cau­sados; por exemplo, o que se move é movido por outro; uma causa subordinada é movida por outra superior; o ser contin­gente é causado por um ser necessário; uma perfeição parti­cipada em distintos graus é causada pela mesma existente em máximo grau; um ser cognoscitivo, que opera por fim, é cau­sado, movido e dirigido por uma inteligência. Bem assegurado este caráter de efeito, a razão, em vir­tude do princípio de causalidade, passa a demonstrar a exis­tência da causa.

Um segundo passo, comum a todas as vias, é que, numa subordinação per se de causas, não se pode proceder ao infi­nito, mas que é absolutamente necessário chegar a uma pri­meira causa, da qual dependem todas as outras.

Logo, tem de existir um primeiro motor que tudo move, uma primeira causa que põe em actividade todas as outras; um ser necessário, que é a causa de todos os seres necessários e contingentes; um primeiro ser, que é fonte e origem do ser em quantas coisas existem; e uma primeira inteligência, que dirige todas as coisas a seus respectivos fins.

Esta última causa é Deus.

Por conseguinte, todas as vias de Tomás de Aquino terão, pelo menos:

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Tomás responde: Há obrigação de testemunhar?

Lourenço perante a corte do imperador ValerianoFra Angelico, Lourenço perante a corte do imperador Valeriano (1447-1450)

Parece que não há obrigação de testemunhar:

  1. Com efeito, Agostinho declara: Abraão afirmando de sua mulher: “é minha irmã”, quis ocultar a verdade e não proferir uma mentira. Ora, quem oculta a verdade abstém-se de testemunhar. Logo, não há obrigação de testemunhar.
  2. Além disso, ninguém está obrigado a agir de maneira fraudulenta. Ora, lê-se no livro dos Provérbios: “O fraudulento revela os segredos; mas o homem fiel guarda o que o amigo lhe confiou” (11, 13). Logo, não se está obrigado a testemunhar, sobretudo quando se trata de segredo confiado pelo amigo.
  3. Ademais, os clérigos e sacerdotes são mais que todos obrigados a observar o que é necessário à salvação. Ora, aos clérigos e sacerdotes é proibido testemunhar em causa capital. Logo, testemunhar não é de necessidade para a salvação.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, Agostinho escreve: “Quem oculta a verdade e quem profere mentira, são ambos culpados; o primeiro, porque não quer ser útil; o segundo, porque busca prejudicar”

tomas_respondoNo ato de testemunhar, é mister distinguir: às vezes, o testemunho é exigido, outras vezes, não. Quando o depoimento de um súdito é requerido pela autoridade de um superior, a quem deve obediência em matéria de justiça, não há dúvida que está obrigado a testemunhar dentro da ordem do direito. Por exemplo, sobre crimes manifestos ou já denunciados pela opinião pública. Se, porém, se requer o testemunho sobre outros fatos, por exemplo, sobre casos ocultos ou não divulgados pela opinião pública, não há obrigação de testemunhar.

Mas, quando o depoimento não é requerido pela autoridade à qual se deve obediência, cumpre ainda distinguir. Se o testemunho é pedido a fim de livrar alguém ameaçado injustamente de morte ou de qualquer castigo, de desonra imerecida ou de algum dano, então há obrigação de testemunhar. E mesmo que o depoimento não seja requerido, deve-se fazer o possível para manifestar a verdade a quem possa ser útil. Pois, lê-se no Salmo: “Salvai o pobre e libertai o desvalido da mão do pecador” (81, 4); e nos Provérbios: “Libertai aqueles que são levados à morte” (24, 11); e na Carta aos Romanos: “São dignos de morte não só os que agem assim, mas também quem os aprova” (1, 32). A Glosa ajunta esta precisão: “Aprovar é calar, quando se pode refutar o erro”. Leia mais deste post

Tomás responde: O demônio é cabeça dos maus?

Mihály_Zichy_O_triunfo_do_genio_destruicaoMihály Zichy (1827-1906), O Triunfo do Gênio da Destruição (1878)

Parece que o demônio não é cabeça dos maus:

1. Com efeito, pertence à natureza da cabeça causar o sentido e o movimento nos outros membros. Assim diz certa Glosa comentando a Carta aos Efésios: “Ele o deu como cabeça” etc… Ora, o demônio não tem o poder de causar a malícia do pecado, que procede da vontade do pecador. Logo, o demônio não pode ser dito cabeça dos maus.

2. Além disso, qualquer pecado torna o homem mau. Ora, nem todos os pecados provêm do demônio, como está claro no pecado dos próprios demônios que não pecaram em virtude da persuasão de outros. Do mesmo modo, nem todo pecado dos homens procede do demônio. Assim consta do livro Dos Dogmas Eclesiásticos: “Nem todos os maus pensamentos são despertados em nós pela instigação do demônio; algumas vezes nascem do movimento de nosso livre-arbítrio”. Logo, o demônio não é cabeça de todos os maus.

3. Ademais, a um só corpo é destinada uma só cabeça. Ora, a multidão inteira dos maus não parece possuir algo segundo o qual esteja unida. Com efeito, “acontece ao mal ser contrário do mal”, na medida em que procede “de defeitos diversos” como diz Dionísio. Logo, o demônio não pode ser dito cabeça de todos os maus.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, comentando o livro de Jó: “Desapareça sua lembrança da terra” (18, 17), diz a Glosa: “isso se diz de qualquer pecador, para que volte à sua cabeça, isto é, ao demônio”.

Tomas_RespondoComo acima foi dito (art. prec.), a cabeça não só causa interiormente nos membros, mas também os governa exteriormente dirigindo seus atos para algum fim. Desta sorte pode-se denominar a alguém cabeça da multidão: ou segundo os dois aspectos, pelo influxo interior e pelo governo exterior; assim, Cristo é a cabeça da Igreja, como antes foi explicado. Ou somente segundo o governo exterior, e assim qualquer príncipe ou prelado é cabeça da multidão que lhe é sujeita. Segundo esse modo, o demônio pode ser dito cabeça de todos os maus, pois, como está no livro de Jó: “Ele é rei sobre todos os filhos da soberba” (41, 25).

Cabe ao que governa conduzir os governados a seu fim. O fim do demônio é fazer a criatura racional voltar as costas para Deus. Por isso, desde o princípio, tentou remover o homem da obediência ao mandamento divino. Voltar as costas para Deus tem razão de fim enquanto é desejado sob a aparência de liberdade, segundo o profeta Jeremias: ”Há muito quebraste te jugo, rompeste teus laços, dizendo: ‘Não servirei’” (2, 20). Portanto, enquanto pelo pecado alguns são levados a esse fim, incidem sob o regime e governo do demônio. E por isso ele é chamado sua cabeça.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Embora o demônio não possa influir interiormente na inteligência, pode, no entanto, induzir ao mal por sugestão. Leia mais deste post

Tomás responde: Pode o juiz licitamente relaxar a pena?

Francis_van_Bossuit_Suzana_anciãosFrancis van Bossuit, Suzana e os juízes anciãos (1700)

Parece que o juiz pode licitamente relaxar a pena:

1. Com efeito, está dito na Carta de Tiago: “Haverá juízo sem misericórdia para quem não fez misericórdia” (2, 13). Ora, ninguém é punido por não ter feito o que não podia licitamente fazer. Logo, qualquer juiz pode fazer misericórdia, relaxando a pena.

2. Além disso, o juízo humano deve imitar o divino. Ora, Deus relaxa a pena a quem se arrepende, pois “não quer a morte do pecador”, como diz a Escritura ((Ez 18, 23). Logo, também o homem, na função de juiz, pode relaxar a pena àquele que se arrepende.

3. Ademais, é lícito fazer o que é útil a alguém e não prejudica a ninguém. Ora, absolver da pena o réu lhe é vantajoso e não faz mal a ninguém. Logo, o juiz pode licitamente fazê-lo.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, prescreve-se no livro do Deuteronômio, a respeito de quem leva outros à idolatria: “Teu olho será sem piedade para ele, não o pouparás, não o esconderás, mas o matarás sem tardar” (13, 8-9). E a propósito do homicida: “Morrerá. Não terás dó dele” (19, 12-13).

Tomas_RespondoDo que se estabeleceu, se evidenciam dois dados a observar na conduta do juiz. Primeiro, ele deve se pronunciar entre um acusador e um réu. Segundo, ele não profere a sentença de sua própria autoridade, mas como investido da autoridade pública. Logo, uma dupla razão interdiz ao juiz absolver da pena o réu. A primeira vem do acusador, que tem, às vezes, o direito de exigir a punição do réu, por exemplo, pelo dano que lhe causou. Então, nenhum juiz pode relaxar essa pena, pois todo juiz deve assegurar a cada um o seu direito.

A outra razão diz respeito ao Estado, em nome do qual se exerce a justiça e cujo bem exige que os malfeitores sejam punidos. Contudo, há uma diferença entre os juízes inferiores e o juiz supremo, o príncipe, investido da plenitude do poder público. Pois o juiz inferior não tem o poder de absolver da pena o réu, indo de encontro às leis a ele impostas pelo superior. Nesse sentido, a propósito da palavra do Evangelho de João: “Não terias sobre mim poder algum” (19, 11), comenta gostinho: “Deus dera a Pilatos um poder subordinado ao de César, de modo que, de maneira alguma estava livre de absolver o acusado”. O príncipe, porém, investido dos plenos poderes no Estado, pode licitamente absolver o réu, contanto que a vítima da injustiça queira perdoar, e ele julgue que daí não resultará qualquer dano para a utilidade pública.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. O juiz pode exercer sua clemência nas causas deixadas ao seu arbítrio. Nesse caso, “é próprio do homem de bem procurar suavizar os castigos”, segundo o parecer do Filósofo. Mas, nas matérias determinadas pela lei divina ou humana, não lhe cabe fazer misericórdia. Leia mais deste post

Tomás responde: O furto é pecado mortal?

Giovanni_Battista_Tiepolo_Raquel_idolosGiovanni Battista Tiepolo (1696-1770), Raquel sentada sobre os ídolos

“Labão fora tosquiar o seu rebanho e Raquel roubou os ídolos domésticos que pertenciam a seu pai” (Gn 31, 19)

Parece que o furto não é pecado mortal:

1. Com efeito, se diz no livro dos Provérbios: “Não é grande falta, se alguém comete furto” (6,30). Ora, todo pecado mortal é grande falta. Logo, o furto não é pecado mortal.

2. Além disso, ao pecado mortal se deve a pena de morte. Ora, pelo furto, a Lei não inflige a pena capital, mas apenas a pena de dano, como se lê no livro do Êxodo: “Se alguém furtar um boi ou uma ovelha, restituirá cinco bois por um boi, e quatro ovelhas por uma ovelha” (22,1). Logo, o furto não é pecado mortal.

3. Ademais, pode-se furtar tanto coisas pequenas como grandes. Ora, parece absurdo que alguém seja punido de morte eterna por ter furtado uma pequena coisa, uma agulha ou uma pena, por exemplo. Logo, o furto não é pecado mortal.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, ninguém é condenado pelo julgamento divino, a não ser por pecado mortal. Ora, é condenado quem furta, de acordo com o livro de Zacarias: “Esta é a maldição que vai se estender por toda a terra, pois como está escrito, todo ladrão será condenado” (5, 3). Logo, o furto é pecado mortal.

Tomas_RespondoComo já ficou explicado, é pecado mortal o que vai contra a caridade, pois ela é a vida espiritual da alma. Ora, a caridade consiste principalmente no amor de Deus e, secundariamente, no amor do próximo, levando-nos a lhe querer e fazer o bem. Ora, pelo furto o homem causa dano ao próximo em seus bens, e se, a cada passo, os homens roubassem uns aos outros, pereceria a sociedade humana. Logo, o furto é pecado mortal, pois se opõe à caridade.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Por duas razões se diz que o furto não é uma grande falta. Primeiro, por causa da necessidade que leva a furtar, e que diminui ou suprime totalmente a falta, como se verá no artigo seguinte. Por isso, o texto citado ajunta: “Com efeito, furta para saciar a sua fome”. Em segundo lugar, em comparação com o adultério, que é punido de morte. Por isso, se diz a seguir: “Uma vez preso, o ladrão restituirá sete vezes o valor do que roubou, mas o adúltero perderá a sua vida”.

2. As penas da vida presente são mais medicinais do que retributivas. A retribuição está reservada ao julgamento divino, que se aplicará, segundo a verdade, aos pecadores. Por isso, no julgamento da vida presente, não se inflige a pena de morte por qualquer pecado mortal, mas somente por aqueles que causam dano irreparável ou comportam uma horrível deformidade. Assim, pelo furto, que não causa dano irreparável, o julgamento presente não aplica a pena de morte, a não ser que o furto seja acompanhado de circunstância particularmente agravante, como no sacrilégio, que é o furto de coisa sagrada; ou no peculato, que é o desvio do bem comum; como Agostinho explica no comentário ao Evangelho de João; ou no sequestro ou rapto de um homem, o qual é punido de morte, como se vê no livro do Êxodo (21, 16).

3. O que é mínimo pode ser tido por nada. Assim, nos pequenos furtos não se considera que haja verdadeiro dano; e quem rouba coisa de pouco valor pode presumir que não age contra a vontade do proprietário. Portanto, quem se apodera furtivamente dessas coisas mínimas, pode ser escusado de pecado mortal. Mas se há intenção de furtar e de causar dano ao próximo, poderá haver pecado mortal, mesmo em coisas mínimas, como se dá com o simples pensamento, quando há consentimento.

Suma Teológica II-II, q.66, a.6

Tomás responde: É permitido aos pais bater nos filhos?

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Parece que não é permitido aos pais bater no filhos:

1. Com efeito, o Apóstolo escreve: “Vós, pois, não exciteis à ira vossos filhos” (Ef 6, 4). Ora, os açoites excitam mais a ira, e são mais graves do que as ameaças. Logo, os pais não devem bater nos filhos.

2. Além disso, o Filósofo declara: “A palavra paterna é só para advertir, não para coagir”. Ora, bater é uma forma de coação. Logo, os pais não devem bater em seus filhos.

3. Ademais, a cada um é permitido corrigir o outro. É uma esmola espiritual, como já se explicou. Se é lícito aos pais bater em seus filhos para os corrigir, de maneira semelhante, todos poderiam bater em qualquer um. O que é evidentemente falso. Logo, também a premissa.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, está escrito no livro dos Provérbios: “Quem poupa a vara, odeia seu filho (13, 24). E, mais longe: “Não deixes de corrigir o menino, porque se o fustigas com a vara, ele não morrerá. Tu o fustigarás com a vara e livrarás sua alma do inferno”.

Tomas_RespondoComo a mutilação, as pancadas fazem mal ao corpo, mas de maneira diferente. Enquanto a mutilação priva o corpo de sua integridade, as pancadas causam apenas uma sensação de dor, o que é um dano menor. É interdito causar um dano a outrem, a não ser como castigo para o bem da justiça. Ora, alguém só pune justamente a quem está sob sua jurisdição. Portanto, apenas aquele que tem autoridade poderá bater em um outro. E uma vez que o filho está sujeito ao pai, o pai pode bater no filho, em vista de o corrigir e formar.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Sendo apetite de vingança, a cólera é sobretudo provocada quando alguém se considera injustamente lesado, como explica o Filósofo. Se, portanto, se prescreve ao pais que não excitem os filhos à cólera, não lhes é proibido baterem neles para os corrigir, mas somente o fazerem sem moderação.

2. Um poder maior implica uma maior força coercitiva. Sendo a cidade uma comunidade perfeita, o seu príncipe tem o pleno poder coercitivo. Porém, o pai, que está à frente de uma comunidade doméstica, sociedade imperfeita, têm um poder coercitivo imperfeito, impondo penas mais leves, que não causam dano irreparável. Tal é a palmada.

3. A todos é lícito corrigir a quem o queira aceitar, Mas impor uma correção a quem a recusa, cabe somente àquele que tem o encargo do outro. Nesse encargo se inclui o castigar com a palmada.

Suma Teológica II-II, q.65, a.2

Tomás responde: Quem mata alguém casualmente é culpado de homicídio?

fogo_amigoO sargento Ken Kozakiewicz lamenta a morte de seu parceiro Andy Alaniz, vítima de fogo amigo no último dia da Guerra do Golfo.

Parece que quem mata alguém casualmente é culpado de homicídio:

1. Com efeito, lê-se no livro do Gênesis (4, 23-24) que Lamec, crendo matar um animal, matou um homem, e isso lhe foi imputado como homicídio. Logo, se torna culpado de homicídio quem mata alguém casualmente.

2. Além disso, está prescrito n livro do Êxodo (21, 22-23): “Se alguém ferir uma mulher grávida e provocar um aborto, se daí se seguir a morte dela, dará vida por vida”. Ora, isso pode ocorrer sem nenhuma intenção de dar a morte. Logo, o homicídio casual reveste toda a culpabilidade do homicídio.

3. Ademais, vários cânones do Decreto punem o homicídio casual. Ora, penas só se aplicam a culpas. Logo, quem matou casualmente um homem incorre na culpabilidade de homicídio.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, Agostinho escreve: “Não se pense em nos imputar uma ação lícita, que fazemos para o bem, mas da qual resulta, fora de nossa intenção, um mal para outrem.” Ora, acontece, por vezes, que um homicídio seja o resultado casual de uma ação empreendida com boa intenção. Logo, seu autor não deve ser julgado culpado.

Tomas_RespondoO acaso, segundo o Filósofo, é uma causa que age fora da intenção do agente. Assim, as coisas casuais, absolutamente falando, não são nem intencionais nem voluntárias. E como todo pecado é voluntário, como ensina Agostinho, segue-se que os efeitos do acaso não podem como tais constituir pecados. No entanto, aquilo que de maneira atual e por si mesmo, não é querido e intencionado, pode acontecer que o seja acidentalmente; entendendo-se causa acidental a que remove o obstáculo à ação. Assim, quem não remove a causa de um homicídio, quando devia fazê-lo, tornar-se-á, de certa maneira, culpado de homicídio voluntário.

O que se pode dar de dois modos: seja quando, praticando uma ação ilícita, que deveria evitar, dá lugar ao homicídio; seja, não tomando todo o cuidado devido. Por isso, segundo o direito, se alguém se empenha em uma ação lícita, tomando as precauções devidas, e, no entanto, provoca um homicídio, não se tornará culpado de homicídio. Se, porém, praticar uma ação ilícita, ou mesmo uma ação permitida, porém sem a diligência necessária, não estará livre da culpa do homicídio, se de seu ato resultar a morte de alguém.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que: Leia mais deste post

Tomás responde: Matar quaisquer seres vivos é ilícito?

Picanha

Parece que matar quaisquer seres vivos é ilícito:

1. Com efeito, o Apóstolo escreve aos Romanos: “Quem resiste à ordem estabelecida por Deus atrai sobre si a condenação” (13, 2). Ora, é pela ordem da divina providência que se conservam em vida todos os seres, conforme esta palavra do Salmo: “É ele que faz crescer a erva sobre os montes e dá aos animais seu alimento” (146, 8-9). Logo, matar quaisquer seres vivos parece ilícito.

2. Além disso, o homicídio é pecado porque priva o homem da vida. Ora, a vida é comum aos homens, aos animais e às plantas. Logo, pela mesma razão parece ser pecado matar os animais e as plantas.

3. Ademais, a lei divina determina pena especial só para o pecado. Ora, ela estatui uma pena especial para quem mata um boi ou uma ovelha de outrem, como se vê no livro do Êxodo (22, 1). Logo, matar os animas é pecado.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, Agostinho declara: “Quando ouvimos o preceito: Não matarás, não entendemos que se aplique às plantas, pois são desprovidas de sentimento, nem aos animais irracionais, pois não têm a razão em comum conosco. É, portanto, ao homem que havemos de aplicar esta palavra: Não matarás!

Tomas_RespondoNinguém peca utilizando uma coisa para o fim a que é destinada. Ora, na hierarquia dos seres, os menos perfeitos são para os mais perfeitos; como, no processo da geração, a natureza vai do imperfeito ao perfeito. Com efeito, na geração do homem, primeiro existe o ser vivo, depois, o animal, e finalmente o homem. Assim os seres que só têm a vida, os vegetais, são, no conjunto, destinados a servir aos animais todos, e os animais, ao homem. Por isso, não é ilícito que o homem se sirva das plantas para a utilidade dos animais, e dos animais para o bem do homem, como explica o Filósofo. Entre outros usos, o mais necessário parece ser que as plantas sirvam de alimento aos animais, e os animais, aos homens. O que não se pode conseguir sem matá-los. Logo, é lícito matar as plantas para uso dos animais, e estes para utilidade do homem, em virtude da ordem divina. Pois se lê no livro do Gênesis: “Eis que vos dou todas as ervas e todas as árvore para vos servirem de sustento para vós e os animais da terra” (1, 29-30). E, ainda: “Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento” (9,3).

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Por ordem divina, conserva-se a vida dos animais e das plantas, não por causa deles, mas do homem. Por isso, Agostinho declara: “Por uma ordem justíssima do Criador, a vida e a morte desses seres estão a nosso serviço”. Leia mais deste post

Religión: leer, elegir, ligar

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Cuando Tomás de Aquino aborda la cuestión de la religión, comienza notando las tres posibles etimologías del término. En primer lugar, religión es una palabra derivada de “re-leer”. La persona religiosa continuamente lee lo concerniente a Dios. Santo Tomás dice que “a estas materias hay que darles muchas vueltas en nuestro interior”, y cita el libro de los Proverbios: “en todos tus caminos piensa en Él”. Efectivamente, por mucho que busquemos y pensemos, nunca acabamos de entender la maravilla y la grandeza del misterio de Dios. Más aún, al que busca y ama al Dios que en Jesucristo se revela, le ocurre una extraña sensación: parece que cuanto más le conoce y más se acerca a él, más ganas siente de conocerle. Es un conocimiento que se retroalimenta y que cada vez tiene más hambre. Por este motivo, la persona religiosa nunca se cansa de leer; al contrario, cuanto más lee, más ganas tiene de seguir. ¿Qué es lo que lee? Lee su historia y la historia de la humanidad como conducida por la mano de Dios, en todo descubre la huella de lo divino, por todas partes encuentra signos de su presencia.

 En segundo lugar, religión podría provenir de re-elegir. La persona religiosa continuamente está eligiendo a Dios. Si no lo hacemos, corremos el riesgo de perderle. Son muchas las seducciones que quieren alejarnos de él. Por eso, la mujer y el varón religiosos están siempre optando por Dios. Al hacerlo, Dios se les presenta como una continua novedad, pues con él nunca se acaba. Y con él siempre hay nuevas cosas que descubrir. Por otra parte, optar por Dios supone estar muy atento a todo aquello que puede apartarnos de él. Para la persona religiosa Dios es la opción fundamental de vida, a la que se subordina cualquier otro deseo. Hacia Dios debe tender sin cesar nuestra elección porque él es la meta y el sentido de nuestra vida.

 Finalmente, el de Aquino conoce una tercera etimología. Religión procede de re-ligar. Por medio de los actos religiosos nos unimos con Dios, lo temporal se une con el Eterno, lo criatura con su Creador. “Pues a Él es a quién principalmente debemos ligarnos como a principio indeficiente”, dice santo Tomás. Dicho de otra manera: unidos a Dios vivimos unidos a la fuente de la vida, a la suma felicidad, al amor más pleno, al que nunca falla y todo lo sostiene, pues es el origen, el fundamento y la plenitud de Dios lo que existe. Por eso, pretender desligarse de Él es pretender lo imposible, es vivir en la más absurda de las contradicciones. Lejos de Dios solo hay nada y vacío. Lejos de Dios no hay vida.

 En suma, la religión, la unión con Dios, es una clave para leer la historia y los acontecimientos, para vivir adecuadamente, eligiendo lo mejor, y para conocer el sentido de todo lo que existe.

Por que ler Tomás de Aquino hoje?

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Um lançamento da Editora Ecclesiae – a tradução, pela primeira vez no Brasil, da parte das Quaestiones disputatae dedicada ao “poder de Deus” – recoloca uma pergunta que muitos hesitam em fazer: por que ler Tomás de Aquino hoje?

Uma questão pertinente para alguém que, como eu, não é filósofo e, muito menos, leitor assíduo de Aquino. Por que eu deveria perder meu tempo com um padre dominicano que viveu no longínquo século XIII?

Para responder, não recorro à Wikipédia, mas às lembranças que guardo das poucas leituras que fiz, há três décadas no mínimo. O que ficou, para mim, do Aquinate?

A limpidez do raciocínio, sem dúvida. Limpidez que chegou a produzir vertigens no jovem viciado no estudo de marxistas e estruturalistas. Tive de readequar minha mente ao que, percebi com dificuldade, é a argumentação racional per se, isto é, o verdadeiro método para apreender a realidade, analisá-la, estabelecer distinções e elaborar respostas às perguntas fundamentais que se colocam quando me interrogo sobre o sentido da vida. 

Essa sincera busca da verdade, uma sinceridade que se contrapõe ao mundo ideológico, incansável em seu trabalho de tentar nos convencer de que certos temas, quase sempre de ordem metafísica, são cartas definitivamente fora do baralho, foi o que me conquistou.

Lembro-me de uma pequena história contada por meu professor de Filosofia: Tomás de Aquino rezava na capela quando vê um amigo morto, que teria sido autorizado a visitá-lo apenas para se despedir. O anseio do Doutor Angélico pela verdade é tão grande, que ele não se interessa pela emoção da despedida, mas começa a interrogar seu amigo sobre as características da visão beatífica que ele, provavelmente, já alcançara.

Verdade ou não, a história revela um pouco desse homem que, livre e maduro o suficiente para interrogar um morto com naturalidade, ergueu um monumento filosófico cujo objetivo é conciliar fé e razão, imergindo os princípios aristotélicos no inesgotável oceano do cristianismo.

Um homem desse tipo, que dedicou sua vida à tarefa mais honrosa e também mais ingrata – a de buscar a verdade –, abdicando de toda vaidade, de todo orgulho, merece de nós pelo menos algumas horas de leitura.

Fonte: Rodrigo Gurgel

Santo Tomás de Aquino, por Chesterton

Artigo de G. K. Chesterton, publicado originalmente na revista The Spectator, em 27 de fevereiro de 1932, antes do autor lançar seu livro sobre Santo Tomás de Aquino.

Tradução: Rafael Carneiro Rocha

A dificuldade de falar sobre Santo Tomás de Aquino neste breve artigo é selecionar qual aspecto de sua mente multifacetada seria melhor para sugerir a dimensão ou a escala dela. Por causa do seu corpo opulento que carregava seu igualmente maciço cérebro, ele era chamado de “O boi”. É assim: qualquer tentativa de reduzir tamanha inteligência para um artigo de tablóide se parece com todas as piadas possíveis sobre um boi numa xícara de chá. Ele foi um dos dois ou três gigantes; um dos dois ou três maiores homens que já viveram; e eu não ficaria surpreso se ele realmente fosse, independentemente da santidade, o maior deles. Outra maneira de considerar Santo Tomás de Aquino com outros gigantes é assumir que a proporção varia de acordo com o que os outros homens são comparáveis ou não a ele. Não teremos uma escala de grandiosidade até constatar que poucas criaturas históricas poderiam rivalizar com o santo.

Assim, para começar, poderemos situá-lo no contexto da vida ordinária de seu tempo e narrar suas aventuras no meio dos contemporâneos dele. Sozinho, ele lançou uma luz sobre a história, a despeito da luz que lançara sobre a filosofia. Nascido em berço de ouro, não muito distante de Nápoles, quando este filho de um grande nobre de Aquino revelou seu desejo de se tornar monge, pareceria, de acordo com aquela época, que tudo seria facilitado para ele. Uma figura influente poderia ser admirada, com decoro, na hoje antiga rotina dos beneditinos; como o filho mais novo de um escudeiro teria se tornado um pároco daquelas redondezas. Mas o mundo de então havia sido pisoteado em todos os seus caminhos por uma revolução religiosa. Quando o jovem Tomás insistiu em se tornar um dominicano – um frade vagante e pedinte – seus irmãos se utilizaram de táticas como perseguição, sequestro e silêncio no cárcere. Era como se o filho de um latifundiário se tornasse um cigano ou um comunista. Contudo, ele conseguiu se tornar frade e o discípulo preferido do grande Santo Alberto Magno (1). Em seguida, se estabeleceu em Paris, onde foi um proeminente defensor das ordens mendicantes (2) que surgiam em Sorbonne e onde quer que fosse. Adiante, ele se encontrou no cerne da controvérsia sobre Averróis (3) e Aristóteles, que refletiu na reconciliação entre a fé cristã e a filosofia pagã. Mesmo em sua vida social, as preocupações de espírito lhe ocupavam muito. Homem grande, corpulento, manso e bem-humorado, às vezes era dado a transes. Durante um jantar com São Luís (4), o rei francês, Santo Tomás ensimesmou-se de tal forma que, subitamente, bateu na mesa com o punho e bradou: “Isto vai liquidar os maniqueus!” O rei, com a fineza irônica e inocente, pediu para um serviçal anotar o raciocínio de Santo Tomás, para que as palavras não fossem esquecidas.

Então, ele poderia ser comparado com santos e teólogos mais místicos do que dogmáticos. Como homem sensato, Santo Tomás era místico privadamente e, em público, um filósofo. Tudo bem que ele tinha “experiência religiosa”; mas ele não pedia, à maneira moderna, que outras pessoas racionalizassem sua Leia mais deste post

Tomás em quadrinhos

História em quadrinhos bem humorada sobre Tomás de Aquino que inclui as famosas cinco vias  para provar a existência de Deus, tirada da revista Action Philosophers. CLIQUE AQUI para ler.

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Tomás responde: Devem ser adoradas de algum modo as relíquias dos santos?

Ampola com sangue do Beato João Paulo II

Parece que não devem ser adoradas de modo algum as relíquias dos santos:

1. Com efeito, não devemos fazer nada que possa ser ocasião de erro. Ora, adorar as relíquias dos mortos parece cair no erro dos pagãos, que rendiam culto aos mortos. Logo, não devem ser honradas as relíquias dos santos.

2. Além disso, parece uma tolice venerar um objeto insensível. Ora, as relíquias dos santos são insensíveis. Logo, é tolice venerá-las.

3. Ademais, um corpo morto não é da mesma espécie do que um corpo vivo; e, por conseguinte não parece ser numericamente o mesmo. Parece, pois, que depois da morte de um santo, o seu corpo não deve ser adorado.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, diz o livro dos Dogmas eclesiásticos: “Cremos que devem ser adorados com sinceridade os corpos dos santos, e principalmente as relíquias dos bem-aventurados mártires, como se fossem os membros de Cristo”. E acrescenta logo depois: “Se alguém for contra esta doutrina, não é cristão, mas seguidor de Eunômio e de Vigilâncio”.

Agostinho afirma: “Se a roupa e a aliança de um pai, ou outras coisas parecidas, são tanto mais apreciadas pelos filhos quanto maior é o seu amor pelos pais, de modo algum devem ser desprezados os corpos que, sem dúvida, são para nós muito mais familiares e intimamente unidos do que qualquer roupa que vistamos; pois os corpos pertencem à natureza mesma do homem”. É evidente que quem ama uma pessoa, depois de sua morte, venera tudo o que fica dela; não só o corpo ou as partes dele, mas também objetos exteriores, por exemplo, as roupas ou coisas semelhantes. É, pois, evidente que devemos ter veneração pelos santos de Deus como membros de Cristo, filhos e amigos de Deus e intercessores nossos. E, portanto, em memória deles, devemos venerar dignamente qualquer relíquia deles, principalmente os seus corpos, que foram templos e órgãos do Espírito Santo, que habitou e agiu neles, e que devem ser configurados ao corpo de Cristo pela glória da ressurreição. Por isso, o próprio Deus honra como convém as suas relíquias, pelos Leia mais deste post

A morte de Tomás

William-Adolphe Bouguereau, O Dia da Morte (1859)

Em 29 de setembro de 1273, Tomás ainda participa do capítulo de sua província, em Roma, na qualidade de definidor. Mas, algumas semanas depois – segundo Bartolomeu de Cápua, que recebeu esse relato de João del Giudice, que o soube por Reinaldo -, quando celebrava a missa na capela de São Nicolau, Tomás sofreu impressionante transformação (fuit mira mutatione commotus): “Após essa missa, nunca mais escreveu ou ditou qualquer coisa, e até mesmo se livrou de seu material de escrever (organa scriptionis); encontrava-se na terceira parte da Suma, no tratado da penitência”. A um Reinaldo estupefato, que não compreende por que ele abandona sua obra, o Mestre responde simplesmente: “Não posso mais”. Voltando a questioná-lo um pouco depois, Reinaldo recebe a mesma resposta: “Não posso mais. Tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi”.

A partir dessa data – por volta de 6 de dezembro (a festo beati Nicolai circa) -, Tomás parece profundamente mudado. Ele, que conhecemos tão robusto e que ainda ontem se levantava para orar antes de todos, faz-se acamado, e é enviado para repousar junto à sua irmã, a condessa Teodora, no castelo de São Severino, a sudeste de Nápoles, um pouco acima de Salerno. Ali só chega à custa de muito esforço (properavit cum difficultate magna), e mal consegue saudar sua irmã, que se inquieta por vê-lo tão taciturno; é então que Reinaldo confia a Teodora jamais ter visto o Mestre fora de si por tanto tempo. É difícil avaliar a duração dessa estada, mas após algum tempo Tomás e seu socius retornam a Nápoles – sem dúvida no final de dezembro de 1273 ou início de janeiro de 1274.

Já em fins de janeiro ou no início de fevereiro, devem novamente se pôr a caminho para o concílio que Gregório X convocou para o 1° de maio de 1274, em Lião, tendo em vista um entendimento com os gregos. Tomás então leva consigo o Contra errores graecorum, que compusera a pedido de Urbano IV. Pouco depois de Teano, absorto em seus pensamentos, não percebe uma árvore tombada no meio do caminho e bate a Leia mais deste post

Doutrina Católica: Maria na obra da salvação (II)

Nossa Senhora de Fátima

I. A MATERNIDADE DIVINA

 

INTRODUÇÃO

A Fé católica na maternidade divina de Maria é professada, já desde o começo do século II, de forma equivalente e clara, por Santo Inácio de Antioquia, São Justino, Santo Irineu e pelos grandes autores do século III. É probabilíssimo que o título Mãe de Deus tivesse já sido usado por Hipólito de Roma e Orígenes. De qualquer modo, ele devia ser habitual na Igreja de Alexandria antes do século IV, a julgar pela antiquíssima oração Sub tuum praesidium confugimos, sancta Dei Genitrix, “A vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus”, conservada num papiro anterior ao Concílio de Éfeso.

A maternidade divina de Maria foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso (431), no qual foi definida, contra Nestório, a unicidade da Pessoa divina em Cristo, com a consequente afirmação de que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus. Esta mesma verdade de Fé está contida na fórmula de união entre alexandrinos e antioquenses, elaborada dois anos depois, e no Concílio de Calcedônia.

Resolvidos os problemas fundamentais em Éfeso e Calcedônia, ficava ainda aberto o campo para uma grande casuística de novas formulações, que facilmente poderiam levantar dúvidas a respeito da precisão dogmática daqueles dois concílios. Tais eram, por exemplo: 1) se era legítimo professar que Cristo era “Um da Trindade”, como faziam os monges escitas, ou 2) que Cristo-Deus padeceu em Sua carne, ou 3) que a sempre Virgem Maria era, própria e verdadeiramente, Mãe do Verbo Encarnado.

Sobre estas formulações evitou pronunciar-se definitivamente o Papa Hormisdas. Mas Justiniano insistiu com o Papa João II (533-535), que, numa carta ao imperador e ao senado de Constantinopla, respondeu justificando as três fórmulas, em razão da communicatio idiomatum.

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1) Carta Olim quidem de João II (março de 534)

Ensinamos, segundo a reta doutrina, que a gloriosa, santa e sempre Virgem Maria é proclamada, pelos católicos, própria e verdadeiramente, Mãe de Deus e Mãe do Verbo de Deus [Dei genitricem matremque Dei Verbi], nela encarnado. Ele, de fato, nos últimos tempos, Se encarnou, própria e verdadeiramente, dignando-Se nascer da santa e gloriosa Virgem-Mãe. Se, portanto, o Filho de Deus nela Se encarnou, própria e verdadeiramente, e dela nasceu, por esta mesma razão confessamos que ela é, própria e Leia mais deste post

Fragmentos: Seguir a Cristo

Não é uma grande coisa finalmente renunciar a tudo [muitos filósofos não têm nenhum cuidado com as riquezas, sublinha Tomás em outras passagens]. A perfeição consiste antes em seguir Cristo, e isso se faz pela caridade: “Se dou todos os meus bens aos pobres… senão tenho a caridade, tudo isso não me serve de nada” (1 Cor 13, 3). A perfeição não consiste em si em coisas exteriores: pobreza, virgindade, etc.; elas não são senão meios para a caridade. Por isso o Evangelista acrescenta: “E eles o seguiram”.

In Matthaeum 4,22,lect.2, n. 373

A perfeição consiste no seguimento de Cristo, enquanto o abandono das riquezas é apenas o caminho. Não basta pois, diz São Jerônimo, renunciar a seus bens; é preciso ainda acrescentar o que fez São Pedro: E nós te seguimos. [Encontramos aqui o exemplo de Abraão, que possuía grandes bens, mas a quem o Senhor pede simplesmente:] “Caminha diante de mim e sede perfeito”, mostrando assim que sua perfeição consistia precisamente em caminhar na presença do Senhor e em amá-lo perfeitamente até a renúncia de si mesmo e de todos os seus bens; o que ele mostrou de maneira eminente pelo sacrifício de seu filho.

De perfectione spiritualis vitae 8, Léon. T. 41, p. B 73

Quatro coisas que se correspondem devem ser consideradas: duas dependem de nós, em nosso agir em relação a Cristo, e duas dependem de Cristo, que as realiza em nós.

A primeira, que depende de nós, é a obediência a Cristo. … A segunda, que depende de Cristo, é a escolha que ele faz de nós e o amor que tem por nós. … A terceira, que novamente depende de nós, é a imitação de Cristo. … A quarta depende ainda de Cristo, e é a recompensa que lhe corresponde: “Eu lhes dou a vida eterna”. Como se ele dissesse, eles me seguem na terra no caminho da humildade e da inocência; farei com que eles me sigam ainda no céu e que eles entrem na alegria da vida eterna.

In Ioannem, 10,27-28, lect. 5, n. 1444-1449

Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Teologia, Igreja

Chestertoninas: O pecado e o gato

“Os modernos mestres da ciência, bem como os antigos mestres de religião, advogam a necessidade de se começar toda e qualquer investigação por um fato positivo. Eles começavam pelo pecado – fato esse tão positivo quanto as batatas. Quer o homem pudesse ou não ser banhado em águas miraculosas, não havia dúvida de que, de qualquer forma, essa ablução era necessária. No entanto, certos líderes religiosos em Londres, não meros materialistas, começaram atualmente a negar, não tanto a muito discutível água, mas a indiscutível sujeira. Alguns dos novos teólogos discutem o pecado original, que é a única parte da teologia cristã que pode ser realmente provada. Certos seguidores do Rev. R. J. Campbell, na sua quase excessiva e fastidiosa espiritualidade, admitem a pureza divina, que não pode ser vista nem mesmo em sonhos, mas negam essencialmente o pecado humano, que pode ser visto a toda hora nas ruas. Os maiores santos, assim como os céticos mais arraigados, tomavam, igualmente, o mal positivo como ponto de partida para a sua argumentação. Se é verdade (como de fato é) que um homem pode sentir uma estranha felicidade ao esfolar um gato, então o filósofo religioso pode fazer apenas uma dessas duas deduções: ou deve negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus, ou deve negar a presente união entre Deus e esse homem, como todos os cristãos fazem. Os novos teólogos, no entanto, julgam ter encontrado uma solução altamente racional: negar o gato.”

G. K. Chesterton, Ortodoxia

Tomás de Aquino, Suma Teológica, Igreja, Cristo, Filosofia

Tomás responde: O martírio é um ato de virtude?

Henryk Siemieradzki (1843-1902): Mulher cristã é martirizada sob Nero, numa recriação do mito de Dirce (1897), Museu Nacional de Varsóvia

Parece que o martírio não é um ato de virtude:

1. Com efeito, todo ato de virtude é um ato voluntário. Ora, o martírio nem sempre é voluntário, como se vê pelos santos inocentes assassinados por causa do Cristo, a respeito dos quais Hilário escreve: “Foram levados ao ápice das alegrias eternas pela glória do martírio”. Logo, o martírio não é um ato de virtude.

2. Além disso, nenhum ilícito pode ser ato de virtude. Ora, matar a si próprio é ilícito. Entretanto, alguns martírios foram consumados desta maneira, conforme o relato de Agostinho: “No tempo das perseguições, algumas santas mulheres, para evitar os perseguidores de seu pudor, se lançaram ao rio e assim morreram; e seu martírio é celebrado na Igreja Católica com grande veneração”. Logo, o martírio não é um ato de virtude.

3. Ademais, é louvável que alguém se ofereça espontaneamente para cumprir um ato de virtude. Ora, não é louvável que alguém se apresente para o martírio, pois isto pode parecer presunçoso e perigoso. Logo, o martírio não é um ato de virtude.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, somente um ato de virtude pode merecer a recompensa da bem-aventurança eterna. Ora, esta recompensa se deve ao martírio, conforme a palavra do Evangelho: “Felizes aqueles que sofrem perseguição pelo amor da justiça, porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5, 10). Logo, o martírio é um ato de virtude.

Cabe à virtude conservar alguém no bem da razão. Mas o bem da razão consiste na verdade, como em seu objeto próprio; e na justiça, como sendo seu efeito próprio. Ora, pertence à razão do martírio que o mártir se mantenha firme na verdade e na justiça contra os assaltos dos perseguidores. E fica assim claro que o martírio é um ato de virtude.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Alguns autores sustentaram que o uso do livre-arbítrio se tinha desenvolvido milagrosamente entre os santos Inocentes, de tal maneira que eles teriam sofrido o martírio voluntariamente. Mas, como isso não é confirmado por nenhum texto da Escritura Sagrada, é melhor dizer que a glória do martírio, que outros mereceram por sua própria vontade, aquelas crianças assassinadas conseguiram pela graça de Deus. Porque a efusão de sangue pelo Cristo faz as vezes do batismo. Portanto, assim como, para as crianças batizadas, o mérito de Cristo age, pelo batismo, para obter a glória, assim também, no caso das Leia mais deste post

Tomás responde: Paulo, quando foi arrebatado, viu a essência de Deus?

Caravaggio, Conversão de São Paulo a caminho de Damasco (1600-1601)

Parece que Paulo, quando foi arrebatado, não viu a essência de Deus:

1. Com efeito, assim como se lê que Paulo “foi arrebatado até o terceiro céu”, lê-se também que Pedro “caiu em êxtase”. Ora, Pedro, nesse êxtase, não viu a essência de Deus, mas uma certa visão imaginária. Logo, parece que tampouco Paulo viu a essência divina.

2. Além disso, a visão de Deus torna a pessoa bem-aventurada. Ora, Paulo, durante seu arrebatamento não foi bem-aventurado; do contrário, não teria jamais voltado às misérias desta vida, e seu corpo teria sido glorificado pela redundância da glória da alma, como sucederá com os santos depois da ressurreição, o que evidentemente é falso. Logo, Paulo, quando foi arrebatado, não viu a essência de Deus.

3. Ademais, a fé e a esperança não podem coexistir com a visão da essência divina, como diz a primeira Carta aos Coríntios (13, 8). Ora, Paulo, naquele estado, teve a fé e a esperança. Logo, não viu a essência de Deus.

4. Ademais, segundo Agostinho, na visão imaginária se vêem certas “imagens dos corpos”. Ora, durante o arrebatamento, Paulo parece ter visto certas imagens, a saber, do “terceiro céu” e do “paraíso”, como ele narra. Logo, parece que foi arrebatado antes a uma visão imaginária que à visão da essência divina.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, Agostinho afirma que “a própria essência de Deus pôde ser vista por certos homens durante esta vida; como, por exemplo, Moisés e Paulo, que, durante o arrebatamento ‘ouviu palavras inefáveis que ao homem não é permitido pronunciar’”.

Alguns disseram que Paulo, durante o seu arrebatamento, não viu a própria essência de Deus, mas um certo reflexo da sua claridade. Contudo, Agostinho professa manifestamente a opinião contrária, não só no livro Da Visão de Deus, como também em seu Comentário literal sobre o Gênese. E essa opinião se encontra igualmente na Glosa sobre a segunda Carta aos Coríntios. E as próprias palavras do Apóstolo o declaram, pois diz ter ouvido “palavras inefáveis que ao homem não é permitido pronunciar”. Ora, o mesmo parece se dar com a visão dos bem-aventurados, que excede a condição da vida presente, segundo diz o livro de Isaías: “O olho não viu, exceto tu, ó Deus, o que tens preparado para os que te amam”. Por isso, parece mais conveniente dizer que Leia mais deste post

Tomás responde: Foi conveniente ter Cristo ressurgido no terceiro dia?

Giotto di Bondone (1266-1337), A Ressurreição, Capela Scrovegni, Pádua

Leia também: Tomás responde: Havia necessidade de Cristo ressuscitar?

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Parece que não foi conveniente ter Cristo ressurgido no terceiro dia:

1. Na verdade, deve haver conformidade entre os membros e a cabeça. Ora, nós, que somos membros de Cristo, não ressurgimos da morte no terceiro dia, mas nossa ressurreição é adiada até o fim do mundo. Logo, parece que Cristo, que é nossa cabeça, não devia ressurgir no terceiro dia, mas ter sua ressurreição adiada para o fim do mundo.

2. Além disso, diz Pedro, nos Atos dos Apóstolos, que não era possível que o inferno e a morte detivessem Cristo. Ora, quando alguém está morto, a morte o detém. Logo, parece que a ressurreição de Cristo não deveria ser adiada até o terceiro dia, mas que ele deveria ressurgir imediatamente, no mesmo dia, especialmente quando a Glosa citada acima (artigo precedente) diz que “não haveria nenhuma utilidade para a efusão do sangue de Cristo se não ressurgisse logo”.

3. Ademais, parece que o dia começa com o nascer do sol, cuja presença é causa do dia. Ora, Cristo ressurgiu antes do nascer do sol, pois diz o Evangelho de João que “no primeiro dia da semana, ao alvorecer, enquanto ainda estava meio escuro, Maria de Magdala vai ao túmulo” (20, 1), e nesse momento Cristo já havia ressuscitado, como se vê a seguir: “E vê que a pedra fora retirada do túmulo”. Logo, Cristo não ressuscitou no terceiro dia.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, diz o Evangelho de Mateus: “E o entregarão aos pagãos para que o escarneçam, o flagelem, o crucifiquem e, no terceiro dia, ele ressurgirá” (20, 19).

Como foi afirmado (artigo precedente), a ressurreição de Cristo foi necessária para a instrução de nossa fé. Ora, a nossa fé diz respeito tanto à divindade como à humanidade de Cristo, pois não basta crer numa sem a outra, como está claro pelo que foi dito acima (q.36 a.4). Portanto, para que se confirmasse nossa fé a respeito da divindade dele, era preciso que ele ressuscitasse logo e que sua ressurreição não fosse adiada até o final do mundo. E para que se confirmasse a fé a respeito da verdade da humanidade e da morte dele, foi conveniente ter havido um espaço de tempo entre a morte e a ressurreição. Pois, se tivesse ressuscitado logo após a morte, poderia parecer que sua morte não fora verdadeira e, conseqüentemente, nem a ressurreição. Para manifestar, porém, a verdade da morte de Cristo, era suficiente que sua ressurreição fosse adiada até o terceiro dia, pois nesse espaço de tempo não costumam aparecer alguns sinais de Leia mais deste post