O país de pernas para o ar

chesterton

SEMANA PASSADA, em uma metáfora despretensiosa, tomei o balanço das árvores e a secreta energia do vento como um típico exemplo do mundo visível movendo-se sob a violência do invisível. Usei essa metáfora simplesmente porque estava escrevendo o artigo num bosque. Porém, agora que retornei a Fleet Street (que me parece, confesso, muito melhor e mais poética do que todas as florestas selvagens do mundo), sou estranhamente perseguido por essa comparação acidental. Os vultos das pessoas parecem uma floresta, e suas almas o vento. Todas as personalidades humanas que me falam ou fazem sinais parecem ter essa característica fantástica da orla da floresta contra o céu. Aquele homem que fala comigo: que é senão uma árvore articulada? Aquele motorista de caminhão que gesticula selvagemente para que eu saia do caminho: que é senão um feixe de galhos agitados por um vento espiritual, um objeto silvestre que posso continuar a contemplar com calma? Aquele policial que ergue a mão para avisar três ônibus do perigo que correm de encontrar-se com minha pessoa: que é senão um arbusto sacudido por um momento por aquela rajada de lei humana que é algo mais forte do que a anarquia? Gradualmente, essa impressão de floresta se esvai. Mas o absoluto contraste entre o visível e o invisível, essa profunda sensação de que a única crença essencial é a crença no invisível como contrário do visível, súbita e sensacionalmente é trazida de volta a minha mente. Exatamente no momento em que Fleet Street se torna mais familiar (isto é, mais desconcertante e esplendorosa), meus olhos caem sobre um cartaz de vívido violeta, em que posso ver escritas em grandes letras pretas estas palavras extraordinárias: “Balconistas de Lojas Deveriam Casar-se?” Quando vi aquelas palavras o mundo todo poderia ter virado de cabeça para baixo. Os homens em Fleet Street poderiam estar andando com as mãos. A cruz de St. Paul poderia estar pendurada no ar de cabeça para baixo. Pois percebo que realmente entrei em um país dos avessos; entrei no país em que os homens definitivamente acreditam que o balanço das árvores é o que provoca o

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Mário? Qual Mário?

Calma lá! Antes de responder, vejamos este comentário de Olavo de Carvalho:

Não tenho a menor dúvida de que, quando passar a atual fase de degradação intelectual e moral do país e for possível pensar numa reconstrução, essa obra, mais que qualquer outra, deve tornar-se o alicerce de uma nova cultura brasileira. A obra, em si, não precisa disso: ela sobreviverá muito bem quando a mera recordação da existência de algo chamado “Brasil” tiver desaparecido. O que está em jogo não é o futuro de Mário Ferreira dos Santos: é o futuro de um país que a ele não deu nada, nem mesmo um reconhecimento da boca para fora, mas ao qual ele pode dar uma nova vida no espírito.

Agora vamos conhecer o tal Mário.

Fonte: Papo de Homem

MarioFerreiraDosSantos

Filósofo brasileiro, nasceu em Tietê, São Paulo, em 1907.

Na primeira vez que ouvi esse nome, eu pensei comigo mesmo: “Mais um brasileiro”. Ignorante, permeado pelo vitimismo típico de brasileiro, imaginava que filósofos eram só estrangeiros.

Curioso como sou, não resisti e decidi investigar a respeito, ao ler sobre a vida deste autor fiquei assustado. Não no aspecto negativo, mas no positivo, do tipo de susto que resulta em admiração. Dividirei com vocês as minhas impressões.

Antes do perfil, porém, uma pequena história.

Como fortalecer o inimigo antes de meter porrada

Mário Ferreira dos Santos demoliu com maestria vários modismos intelectuais da época, com destaque ao vexame imposto a Caio Prado Júnior, um intelectual comunista muito prestigiado. Na ocasião, foi convidado para um debate, onde estariam figuras conhecidas como Luis Carlos Prestes. Após Caio Prado terminar sua apresentação, Mário se levantou e disse mais ou menos o seguinte:

“Me desculpe, mas creio que o comunismo tem elementos mais fortes que esses que expôs. Vou refazer sua exposição e assim depois farei a minha. Aqui está presente o secretário do partido comunista, e ele poderá averiguar se errarei em algo.”

Mário então refez a exposição de Caio de tal modo que alguns de seus amigos presentes, espantados, colocavam a mão na cabeça dizendo: “Meu Deus! O professor virou comunista!”. Depois que terminou a apresentação, Mário começou a sua própria exposição e refutou a si mesmo.

Tais demonstrações de força intelectual não eram raras na vida do filósofo.

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Louis Lavelle – A Presença Total (…o eu existente…)

aquele que é

Paisagem com Moisés e a Sarça Ardente,
Domenichino (Domenico Zampieri) (Italian, Bolognese, 1581–1641)

Nunca encontramos o eu numa experiência separada. O que nos é dado primitivamente não é um eu puro anterior ao ser e independente dele, mas a existência mesma do eu, ou ainda o eu existente, o que significa que a experiência do eu envolve a do ser e constitui uma espécie de determinação desta.

Mais ainda, o eu não pode ter a intuição do seu próprio pensamento senão aplicando o seu pensamento a um objecto. E este objecto, se bem que estando em relação com este pensamento, não se confunde com a sua operação: torna-a possível, mas distingue-se dela e num certo sentido opõe-se-lhe. O objecto do pensamento e o seu acto estão compreendidos ambos no interior do mesmo ser. Limitam-no, mas de um modo que é próprio de cada um deles. É mesmo uma condição de toda a participação, que estes dois termos contrastem de antemão, a fim de precisamente poderem seguidamente pôr-se de acordo.

Assim, a própria noção de ser é muito mais clara e fácil de apreender do que a do eu. Pois o eu escapa-nos logo que tentamos fixá-lo: é móvel e evanescente; é que está em progresso incessante e constitui-se somente pouco a pouco; tememos sempre dar dele uma definição demasiado estreita e confundi-lo com um dos seus elementos, ou uma definição demasiado larga e confundi-lo com um dos objectos aos quais se aplica, mas dos quais se distingue. Inconvenientes deste género não se produzem quando se trata do ser: pois o ser é sempre presente todo inteiro, e não há um único carácter nem um único elemento do real que lhe possa escapar, que não constitua um seu aspecto e que não caia sob a sua jurisdição.

Suponhamos agora que a experiência do eu é primitiva e independente. Então, é-se naturalmente convidado a considerar o eu como sendo a origem mesma das coisas; e é preciso exigir dele que faça esforço para engendrar esse ser total do qual, pensando-se, tirava já o seu ser limitado. Mas é pedir-lhe para refazer ao contrário o caminho que acaba de percorrer. Ora, esta empresa tornou-se impossível: o eu está doravante condenado a ficar fechado nos seus próprios limites; se tem a ilusão de engendrar o ser, é apenas porque se tinha estabelecido nele anteriormente.

Não é através de uma dilatação do eu que se fará com que este se reúna ao ser, se dele se separou anteriormente. Mas se o eu é, desde a origem, interior ao ser, tornando-se cada vez mais interior a si mesmo, poderá esperar descobrir o mistério do seu próprio advento, a lei segundo a qual deve colaborar na ordem universal e tornar-se o obreiro do seu destino individual.

Isto não pode impedir os espíritos que têm mais profundidade metafísica, do que ternura psicológica para consigo mesmos, de atingir o cume desta emoção que sentimos todos no nosso encontro com o ser, através da simples descoberta da sua presença, mais ainda do que através da consciência de nele participar.

(Tradutor: Américo Pereira)

Sto. Tomás, a vaca voadora e nós, por Olavo de Carvalho

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Sto. Tomás, a vaca voadora e nós

OLAVO DE CARVALHO (1)

Caderno de Cultura do IDEAS – Instituto de Estudos e Ações Sociais – da UniverCidade. Ano I, número I, Outubro de 2001.

A Antônio Donato Rosa e Júlio Fleichman.

Nenhum historiador profissional do mundo aceita hoje em dia a lenda setecentista que deprecia a Idade Média como “Idade das Trevas”, mas ela continua firmemente arraigada no credo universitário brasileiro e é repassada de geração em geração por sociopatas militantes e analfabetos funcionais aos quais um abuso de linguagem confere o estatuto de intelectuais acadêmicos.

Só isso já bastaria para ilustrar a imensidão do abismo mental que se alarga dia a dia entre as nações cultas e aquelas onde a negligência ou cumplicidade dos governantes permitiu que as instituições de ensino fossem monopolizadas por propagandistas e demagogos a serviço de grosseiras ambições de poder.

O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e agitadores do século XVIII como expediente de ocasião para a propaganda anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e ideológicas da monarquia. Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia popular, graças ao respaldo de toda sorte de organizações políticas e sociedades pseudo-iniciáticas, o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica aceitável nos meios científicos e hoje subsiste apenas em círculos de ativistas semiletrados do Terceiro Mundo, à margem das correntes vivas do pensamento mundial.

No Brasil ou na Zâmbia, “medieval” ainda pode ser usado como termo pejorativo nas polêmicas da mídia, mas quem quer que se deixe impressionar por isso mostra que é escravo de uma atmosfera mental provinciana, sem a mínima abertura para o horizonte maior da cultura universal.

Em contrapartida, não há estudioso sério que hoje possa contestar a afirmação de Schelling, segundo a qual a transição da filosofia medieval para a atmosfera moderna inaugurada por Descartes assinala a queda do pensamento filosófico para um nível pueril. (2)

Essa queda revela-se da maneira mais escandalosa na simples perda da técnica filosófica cujo domínio distingue o filósofo do beletrista e do ideólogo.

A longa prática da disputatio nas universidades havia dotado os intelectuais europeus de uma Leia mais deste post

Será que tem sentido toda essa morte ao nosso redor?

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Santa Felicita e il martirio dei Maccabei (1863),
Chiesa di Santa Felicita – Firenze, Antonio Ciseri (1821-1891).

Gostaria de recordar aquilo que foi, talvez, a mais profunda experiência por que passei no campo de concentração. As chances de sair dali com vida não passavam de uma em 28, como se pode verificar facilmente em estatísticas exatas. Não parecia nem mesmo possível, e muito menos provável, que o manuscrito do meu primeiro livro, que ocultei dentro da minha capa ao chegar em Auschwitz, jamais pudesse ser salvo. Assim, tive que sofrer e superar a perda do meu filho espiritual. Parecia agora que nada nem ninguém sobreviveria a mim; nem filho físico nem filho espiritual que fossem meus! Leia mais deste post

Quando nada mais resta

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Prisioneiros cavando valas em Auschwitz,
(Auschwitz-Birkenau State Museum Archives – http://www.auschwitz.org)

Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um ainda só pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu aonde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela região no horizonte em que assoma a alvorada por detrás de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e – tanto faz se é real ou não a sua presença – seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora as coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Leia mais deste post

Louis Lavelle – A Presença Total (“o intelectualismo é estéril se não é permeado de espiritualidade”)

The Calling of Saint Matthew by Caravaggio, 1599

Vocação de São Mateus,
Caravaggio (Michelangelo Merisi da Caravaggio) (Itália, 1571–1610)

Leia também: A Presença Total (“ser criado criador”)


A filosofia, da qual apresentamos aqui os princípios essenciais, nada inova. É uma meditação pessoal para a qual a matéria é fornecida por essa philosophia perennis que é a obra comum da humanidade, da qual todas as consciências devem, por seu lado, tomar posse, e que cada uma delas, dando e recebendo ao mesmo tempo, aceitando ser indivisivelmente, relativamente às outras, “mediatizada e mediadora”, deve continuar simplesmente a promover. Se acontece desviarmo-nos, é porque sucumbimos devido a qualquer curiosidade particular, ou a essa necessidade de divertimento que não pode ser satisfeita senão com uma aparência de novidade, ou a essa falta de força e de coragem que nos impede de captar as verdades mais simples e de lhes conformar a nossa conduta. O homem crê sempre poder inventar o mundo: mas então abandona-o e deixa de o ver. Se o ser nos é sempre e todo inteiro presente, o orgulho das mais belas invenções deve curvar-se diante da humildade da mais pobre descoberta. A nossa existência própria, que é ao mesmo tempo distinta da totalidade do real e em comunicação incessante com ela, não pode realizar-se senão na luz: as trevas abolem-na, o conhecimento liberta-a e multiplica-a. Aqui está a verdade eterna do intelectualismo. Mas a luz não é dada senão àquele que a deseja e a busca. Não é conservada senão por aquele que a incorpora na sua potência de amar e de querer. E o intelectualismo é estéril se não é permeado de espiritualidade.

[Fim da Introdução ao livro.]

(Tradutor: Américo Pereira)

[Trecho do prefácio do padre Sertillanges ao seu “A vida intelectual” – Ed. É Realizações, 2010.]


Supõem que isso seja simples? “À escuta de si mesmo” é uma outra formulação para esta expressão: à escuta de Deus. É no pensamento criador que jaz nosso ser verdadeiro e nosso eu na forma autêntica. Ora, essa verdade de nossa eternidade, que domina nosso presente e prevê nosso porvir, é-nos revelada tão somente no silêncio da alma, silêncio dos vãos pensamentos que levam ao “divertimento” pueril e dissipador; silêncio dos barulhos de chamada que as paixões desordenadas não se cansam de fazer-nos escutar. A vocação pede o atendimento, que, num esforço único para sair de si, escuta e atende.

Louis Lavelle – A Presença Total (“ser criado criador”)

The_Sacrifice_of_Isaac_by_Caravaggio (1)

O Sacrifício de Isaac,
Caravaggio (Michelangelo Merisi da Caravaggio) (Itália, 1571–1610)

Leia também: A presença total (Introdução)

Perguntar-se-á ainda com que direito um tal acto pode ser posto, uma vez que a experiência nada mais nos dá, em nós, senão um mundo de estados, fora de nós, senão um mundo de objectos. Mas é dar aqui um sentido demasiadamente restrito ao termo “experiência”. A consciência é sempre consciência da consciência: capta o acto no seu próprio exercício, não de modo algum isolado, sem dúvida, mas sempre ligado a estados nascentes e a objectos em aparecimento. Está sempre situada no ponto mesmo onde se produz a participação, quer dizer no ponto onde, através de uma dupla iniciativa de consentimento e de recusa, unidos a Deus e no entanto separados dele, nos damos a nós mesmos o nosso ser próprio e o espectáculo do mundo.

Dir-se-á que é por uma extrapolação ilegítima que ultrapassamos a correspondência actual entre tal operação e tal dado, que nada nos autoriza a pôr um acto perfeito que funda em si todos os dados, e que esse acto primeiro não pode ser mais do que, relativamente à nossa consciência, um acto de fé? Mas estamos aqui para além de todas as oposições que se podem estabelecer entre a experiência, a razão e a fé, no seio mesmo de onde brotam. É nele que a consciência se constitui, descobrindo concomitantemente a indivisibilidade do acto que a faz ser e a exterioridade de todos os dados que não são subsistentes por si e supõem sempre uma relação com um acto limitado e tolhido; criando ela própria um traço de união entre essas duas infinitudes, a da fonte onde se alimenta e a do objecto para o qual tende; tornando possível e realizando a comunhão de todos os seres particulares na unidade do mesmo universo, e a solidariedade de todos os fenómenos na unidade do mesmo pensamento; redescobrindo a presença actual e inevitável da totalidade do ser em cada instante e em cada ponto. E aceita-se de bom grado que este acto universal, de que falamos, mereça ser denominado um acto de fé, sendo verdade que não pode jamais tornar-se um puro objecto de conhecimento, que ultrapassa sempre tudo o que nos é dado, que nunca é captado, salvo pela nossa vontade de consentir em cooperar com ele, de tal modo que, se bem que seja em si mesmo a condição de tudo o que pode ser posto, não pode ser posto em nós e por nós senão na proporção da nossa própria potência de afirmação, medindo sempre o impulso, o ardor ou o desfalecimento da nossa atenção, da nossa generosidade e do nosso amor.

Sabemos todas as reservas e todas as suspeitas que fará nascer o nosso esforço para levar de repente a consciência ao nível do Ser. Mas, sem a consciência, não seríamos mais do que um objecto, quer dizer existiríamos somente para um outro, e como uma aparência na sua própria consciência. De qualquer modo, não se deve também considerar a nossa consciência pessoal como a simples espectadora de um mundo relativamente ao qual permanecesse estranha. Apenas nos revela o nosso ser verdadeiro, e, ao mesmo tempo, o interior do ser total, ao qual é consubstancial e no qual nos obriga a penetrar e a empenhar o nosso destino. A atitude fenomenista é, ao mesmo tempo, uma recusa do ser e uma recusa de ser. Mas, graças à consciência, cada um de nós, identificando-se necessariamente com o acto interior que realiza, descobre, realizando-o, o mais profundo e o mais belo de todos os mistérios que é o “de ser criado criador”.

(Tradutor: Américo Pereira)

Louis Lavelle – A Presença Total (introdução)

aquele que é

Paisagem com Moisés e a Sarça Ardente,
Domenichino (Domenico Zampieri) (Italian, Bolognese, 1581–1641)

É, parece-nos, uma espécie de postulado comum à maior parte dos espíritos que a nossa vida se esvai no meio das aparências e que não saberemos jamais coisa alguma do próprio Ser: assim, como não teria esta vida aos nossos olhos um carácter de frivolidade? Faz de nós os espectadores de um mundo ilusório que não cessa de se formar e de se dissolver face ao nosso olhar e atrás do qual nós suspeitamos um outro mundo, o único que é real, mas com o qual não temos qualquer contacto. Então, é natural que a consciência, segundo o seu grau de profundidade, se contente com o cepticismo ou se deixe invadir pela inquietude. A vida não pode retomar a confiança em si mesma, não pode adquirir a gravidade, a força e a alegria, se não for capaz de se inscrever num absoluto que nunca falhará, dado que lhe é presente todo inteiro e no qual ela abre para si mesma uma perspectiva, traça um sulco, os quais são a marca e a medida dos seus méritos. Não perde essa angústia de existir, que é inseparável de uma existência que cada uma das nossas acções nos deve dar a nós mesmos: mas esta angústia exprime apenas a tensão suprema da sua esperança.

Pensamos então que é numa ontologia, ou, mais radicalmente, numa experiência do Ser, que o pensamento mais tímido e a acção mais humilde bebem a sua origem, a sua possibilidade e o seu valor. Mas conhecemos bem todas as suspeitas nas quais a ideia de uma primazia do Ser, em relação com todos os seus modos, não deixará de tropeçar: pois, antes do mais, olha-se quase sempre o Ser como estático, terminado e totalmente concluído, como um objecto puro que o eu poderia, talvez, contactar, mas de modo algum modificar, nem penetrar. No entanto, se a lei de participação nos obriga, pelo contrário, a inserirmo-nos no Ser por intermédio de uma operação sempre limitada e imperfeita, a qual faz aparecer, sob a forma de um objecto actual ou possível, justamente o que lhe responde, mas também o que a ultrapassa: é que o Ser total não pode ele mesmo ser definido senão como um sujeito puro, um Si universal, um acto que não encontra nem em si, nem fora de si, a limitação de um estado ou a de um objecto. Longe de ser a morte da consciência, é a sua vida indivisivelmente transcendente e imanente.

Não há, também, outro para além de Deus que possa alguma vez ter dito : “Sou aquele que é.”

(Tradutor: Américo Pereira)

Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 12

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O nada absoluto nada pode produzir, porque é impossível, não tem poder, não tem eficácia para realizar alguma coisa, pois se a tivesse não seria nada absoluto, mas sim alguma coisa.

Mas, podê-lo-á o nada relativo, o não-ser relativo?

Esta, como ainda não está no pleno exercício do ser, também não pode, enquanto tal, produzir alguma coisa, pois, se o fizesse, a eficiência, que revelaria ao produzir alguma coisa, afirmaria o seu pleno exercício de ser, e não seria, portanto, um não-ser relativo, mas um ser em ato.

Se o nada pode produzir, como se conclui por decorrência lógica, ontológica e dialética, como a expusemos em “Criteriologia”, do nosso livro Teoria do Conhecimento, o princípio de que ex-nihilo nihil, que do nada nada surge, é absolutamente verdadeiro, pois se de nada se pudesse fazer alguma coisa, ou o nada fazer alguma coisa, automaticamente não seria nada, mas alguma coisa, por revelar a eficácia de poder, e portanto, de ser.

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 11

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Prova-se de vários modos: Não se conclui por aceitar que, se alguma coisa há, consequentemente, alguma coisa existe.

Existir não é propriamente incluso no haver, pois entende-se por existir a realidade exercitada in re, o ser real, ser em si, o ser no pleno exercício do ser.

Ora, se alguma coisa há, o nada absoluto não há. Se alguma coisa que há não existe, não seria exercitada em si, mas em outro. E esse outro, não podendo ser o nada absoluto, é algum ser que existe, algum ser que está no pleno exercício de ser. E se não for esse, será outro. De qualquer forma, alguma coisa existe para ser o portador do que não existe ainda.

Porque alguma coisa há, e o nada absoluto não há, alguma coisa existe. A existência de alguma coisa decorre, não porque “alguma coisa há”, mas porque o nada absoluto não há.

Portanto, “alguma coisa há” e “alguma coisa existe”.

Ademais, a razão ontológica do existir implica algo que é, uma existência que se dá ex [do latim], fora, como já o mostramos em Ontologia e Cosmologia.

A sistência* existe quando se dá fora de suas causas. Ora, o existir não pode vir do nada absoluto, porque este já está total e absolutamente negado por “alguma coisa há”. A existência de alguma coisa é o exercício do ser dessa coisa, que é um sistência ex, que se dá fora de sua causa. Se alguma coisa existe, nada se daria fora de sua causa. Nenhuma sistência se daria ex. Como o nada absoluto não é qualquer coisa, alguma coisa existe, pois, do contrário, haveria uma sistência que não se daria ex, dando-se, portanto, em outro, o qual existiria. Alguma sistência, que há, tem de existir, porque, não sendo causada pelo Leia mais deste post

Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 10

Tese_10

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Considera-se ente de razão (ens rationis dos escolásticos) aquele cuja única existência está na mente humana. Assim para os idealistas absolutos certas idéias; o tempo e o espaço, a espécie e o gênero para outros filósofos, etc. Considera-se como ente real, aquele que também tem uma existência fora da mente humana (extra mentis). Assim esta casa, para os realistas, além de ter dela uma imagem a mente humana, é uma realidade fora da mente. Em suma, para todos são entes de razão aqueles que não asseguram uma existência fora da mente humana, e são entes reais os que têm essa existência. Um ente real pode também ter uma correspondência existencial na mente humana, como a tem a imagem que formamos das coisas que compõem o mundo exterior para os realistas.

“Alguma coisa há” pode merecer de alguns a afirmação de que é apenas um ente de razão. Mas se alguma coisa há é um ente de razão, assegura imediatamente que não é apenas um ente de razão, mas sim um ente real, porque se há um ente de razão é porque há algo que é o sustentáculo do mesmo. E se alguma coisa há é mentado*, então alguma coisa há realmente, porque alguma coisa há, para que alguma coisa há seja mentada, o que prova, consequentemente, que é real-real que alguma coisa há, o que vem robustecer, de modo apodítico, a tese, e provar também, apoditicamente, que a Filosofia pode fundar-se em uma verdade universalmente válida.

 

* No sentido de “formado na mente”. A palavra também parece ser um neologismo de Mário, a partir, provavelmente, da raiz latina “mens”.

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 9

Tese_9

 

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Provamos por outra via.

A verdade de “alguma coisa há” não exige, para ser notada, uma mente especial. Ela é notada de per si, e suficientemente, por que a sua negação seria afirmar o nada absoluto, que é absurdo. Alguma coisa há não exige de per se demonstração, podia até dispensá-la. Se ajuntamos algumas, fazemo-la apenas para robustecer, de certo modo, a sua evidência objetiva. E dizemos evidência objetiva porque não é uma verdade subjetivamente captada por adequação, mas de per si suficientemente verdadeira.

A verdade lógica dessa proposição decorre do fato de pertencer o predicado à razão do sujeito, mas é também ontológica por ser necessária.

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 8

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TESE 8: O que há – é; é ser. O que não há é não-ser.

 

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Do que há, diz-se que tem ser e é ser. O conteúdo da palavra ser não é definível, porque, para dizer o que é ser, precisamos de certo modo desse conceito. Mas tudo quanto há é. Ser, diz Suarez, é a “aptidão para existir”. Ser é alguma coisa, e não um mero nada (uma ausência total e absoluta). Só o ser pode, porque só ele tem aptidão para existir, porque o nada absoluto, por impossível e impotente, não tem aptidão para coisa alguma, pois não-é.

Não-ser é o que não há. O nada absoluto é absoluto não-ser.

Se alguma coisa, esta ou aquela, não há, não afirma um nada absoluto, mas apenas que esta ou aquela coisa não há. Ou seja: um nada relativo.

O nada absoluto é um não-ser absoluto.

O nada relativo é um não-ser relativo.

Postulado o primeiro, negar-se-ia, total e absolutamente, que alguma coisa há.

Postulado o segundo (o não-ser relativo), não se negaria, total e absolutamente, que alguma coisa há, mas apenas que esta ou aquela alguma coisa não há.

Mas, aceito que alguma coisa há, não negamos total e categoricamente que alguma coisa não há, “alguma coisa há” e “alguma coisa não há” são dois juízos particulares, subcontrários, e a verdade de um não implica necessariamente a falsidade do outro. Ambos podem ser verdadeiros, como realmente são.

O nada absoluto é impossível, não-pode, pois, para poder, é-lhe necessário ser alguma coisa. Para que algo possa alguma coisa, é preciso ser alguma coisa. O que há, acontece, não o chamamos nada, mas alguma coisa, ser. Portanto, o que não há, não é; e só o que é, há.

Não sabemos ainda em que consiste esse ser, mas sabemos que é.

Com o termo existir entende-se o alguma coisa que é efetivamente no pleno exercício de seu ser, pois o que pode vir-a-ser, ainda é de certo modo, do contrário seria o nada absoluto, o que é impossível.

Se alguma coisa pode vir a acontecer, essa coisa que ainda não se deu, é possível. Se possível, não poderia vir do nada absoluto, porque este já está afastado, mas de alguma coisa que é, porque o nada, sendo impossível e impotente, não poderia produzir alguma coisa.

Portanto, a existência de alguma coisa depende de alguma coisa que é. E alguma coisa que é, deve ser existente, deve estar no pleno exercício de seu ser, para que torne existente o que era apenas possível.

Portanto, podemos alcançar com toda certeza a esta conclusão final: Leia mais deste post

Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 7

Ticiano_Madona_com_coelhoTiciano (1490-1576), Madona com o coelho (aprox. 1530)

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TESE 7 – O nada absoluto é a contradição de alguma coisa há.

 

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Há contradição quando se afirma a presença e, simultaneamente, a ausência do mesmo aspecto no mesmo objeto. Dizer-se que alguma coisa há, é contradizer que há o nada absoluto, porque se há alguma coisa, o nada absoluto está excluído.

Dizer-se: há o nada absoluto – é dizer-se que não há nenhuma coisa; isto é, contradizer-se que alguma coisa há.

 

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 6

Davide_Ghirlandaio_A_Virgem_e_o_Menino_Santos_Apolonia_SebastiaoDavide Ghirlandaio (1452-1525), A Virgem e o Menino com os santos Apolônia e Sebastião (aprox. 1490), Philadelphia Museum of Art

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TESE 6 – Pode-se construir a filosofia com juízos universalmente válidos.

 

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É comum dizer-se que a filosofia não pode ser construída com juízos universalmente válidos, isto é, válidos para todos.

No entanto, essa afirmação é facilmente refutável, bastando que se estabeleça um juízo universalmente válido, sobre o qual, concretamente, se possa construir todo um sistema de filosofia, como o fazemos.

Os juízos, que estabeleceremos como pontos de partida para a fundamentação da Filosofia Concreta, são universalmente válidos.

Só um apelo à loucura, refutado pelo próprio apelo, poderia afirmar que há o nada absoluto e não “alguma coisa”.

Esta vã e louca afirmativa já afirmaria que alguma coisa há. Podemos duvidar de nós, não de que alguma coisa há, pois mesmo que fôssemos uma ilusão, mesmo que nós não houvéssemos, alguma coisa há. Se para expor uma filosofia precisamos de nós, não precisamos de nós para que alguma coisa haja, pois mesmo que fôssemos ilusões, seríamos a ilusão de alguma coisa que há. Portanto, este postulado independe de nós para mostrar-se como evidente. É um juízo universalmente válido, e é sobre ele que se fundará a Filosofia Concreta.

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 5

Paul Gauguin - Cristo no Horto das Oliveiras - 1889Paul Gauguin, Cristo no Horto das Oliveiras (1889)

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TESE 5 – Há proposições não deduzidas, inteligíveis por si de per si evidentes (axiomas)

 

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Bastaria a mera mostra de uma para dar plena validez à tese.

Alguma coisa há e o nada absoluto não há têm tais requisitos, o que vem mostrar, portanto, que há realmente proposições não deduzidas (pois estas não precisam de outras para se mostrarem com evidência), e que são de per si evidentes, pois incluem em si mesmas o suficiente grau de certeza, imprescindível ao axioma, e dispensam demonstração, pois não é mister serem comparadas com outras para revelarem a sua validez.

Elas se evidenciam de per si, o que prova a tese.

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 4

Peter_Paul_Rubens_Quatro_FilosofosPeter Paul Rubens (1577-1640), Os quatro filósofos (1611)

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TESE 4 – A demonstração exige o termo médio; a monstração*, entretanto, não o exige

 

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A demonstração exige o termo médio, pois é uma operação que consiste em comparar o que se pretende provar a algo já devidamente provado.

A monstração segue uma via intuitiva. A evidência do que se mostra impõe-se por si mesma, pois a sua não aceitação levaria ao absoluto. Também se pode fazer uma demonstração direta pela mera comparação acima citada; ou indireta, como a reductio ad absurdum, como no segundo caso.

Podemos exemplificar da seguinte forma: se alguma coisa não há, teríamos o nada absoluto, o que é absurdo: logo alguma coisa há.

Esta é uma demonstração indireta de que há alguma coisa.

 

* A palavra “monstração” não é dicionarizada. Nem “mostração”, sem o “n”. Uma versão aceitável seria “mostra”. No entanto, o sentido original de Mário enfatiza a oposição mostrar/demonstrar. Dada a preocupação do autor com a linguagem e a precisão filosófica do conceito exato (“monstração” vem do verbo latino monstro-monstrare, que significa “mostrar”), mantém-se a “monstração”, que deixa clara a conceituação de Mário, em lugar do “mostra”, menos agressivo ao ouvido e ao olho.

 

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 3

Antonio_Ciseri-Cristo levado ao sepulcroAntonio Ciseri, pintor realista (1821-1891), Cristo levado ao sepulcro (1864-1870)

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TESE 3 – Prova-se mostrando e não só demonstrando

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O conceito de demonstração (de-monstrare) implica o conceito de mostrar algo para tornar evidente outra proposição, quando comparada com a primeira.

A primeira certeza tem a naturalidade de ser mostrada, já que a demonstração implica em algo já dado como absolutamente certo. Para provar-se a validez de algo, basta, assim, a mostra, que inclui os três elementos imprescindíveis para a certeza. O axioma alguma coisa há é evidente de per si, e mostra a sua validez de per si, independentemente da esquemática humana, pois esta pode variar, podem variar os conteúdos esquemáticos, mas que alguma coisa há é evidente para nós, e extra mentis (fora da nossa mente).

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Filosofia Concreta, de Mário Ferreira dos Santos – TESE 2

karl_marxExemplo de “nada absoluto” dentro de uma cabeça

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TESE 2 – O nada absoluto, por ser impossível, nada pode.

 O nada absoluto seria total e absoluta ausência de ser, de poder, pois como o que não é, o que não existe, o que é nada, poderia?

Para poder é mister ser alguma coisa. Portanto, o nada absoluto, além de não ser, é impossível, e nada poderia fazer.

Porque se pudesse fazer alguma, era alguma coisa, e não nada absoluto. Mas, já vimos que há alguma coisa e que não pode haver o nada absoluto; portanto, nada podemos esperar que dele provenha, porque não é nada.

O termo res, em latim (coisa) do verbo reor, significa pensar ou crer. Coisa seria assim o [algo] em que se pensa ou se crê.

E quer tal termo referir-se ao ser concreto tempo-espacial, do qual o homem tem uma intuição sensível, ou a tudo quanto não se pode predicar o nada absoluto. O termo alguma, cuja origem latina, aliquid, nos revela o sentido de aliud (outro) e quid (que), outro que se distingue, que não se confunde, que é “algo” (nota-se a expressão: filho de algo, fidalgo, que não é qualquer, mas de alguém que se distingue), mostra-nos, afinal, que se entende por alguma coisa tudo quanto se põe, se dá e do qual não se pode dizer que é um mero nada. Ora, o nada absoluto não se põe, não se dá, não tem positividade: é pura negação, a ausência total de alguma coisa, do qual se pode dizer que é nada, nada.

Também o termo entitas, entidade, em seu logos (em sua razão intrínseca), significa algo ao qual não se pode predicar o nada absoluto. E tudo o que não é nada absoluto é algo (áliquid), uma entidade (entitas).

Afirmar que “alguma coisa há”, é afirmar que, a tudo quanto não se pode dizer que é nada absoluto, é algo que “acontece”, põe-se, dá-se.

Se não há alguma coisa, teríamos então a ausência total de qualquer coisa que se dá, põe-se. Nem se poderia dizer que o nada absoluto acontece, porque não acontece, nem se dá, nem se põe: é a ausência total. E bastaria que algo houvesse, a presença de algo, para ser improcedente o nada absoluto.

Podemos não ser o que julgamos ser, não é possível, porém, o nada absoluto, a ausência total e completa de qualquer coisa. Alguma coisa há, acontece, dá-se. Em que consiste esse “alguma coisa” é o que nos cabe examinar a seguir.

Em “alguma coisa há”, o sujeito se reflete completamente no verbo, pois fora de “alguma coisa” nada pode haver, pois o nada não há, e o haver é o haver de alguma coisa.

Entretanto, não há identidade real e formal entre haver e alguma coisa, porque haver só o que é quando é de alguma coisa, pois nada não há.

Oportunamente, provaremos por outros caminhos o que ora afirmamos.

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