Doutrina Católica: A graça (IV)

Indiculus (séc. V)

Do pecado original e do livre-arbítrio

Cap. 1. Na desobediência de Adão todos os homens perderam o poder natural [naturalem possibilitatem] e a inocência, e ninguém teria podido, pelo livre-arbítrio, erguer-se do abismo daquela ruína, se a graça do Deus misericordioso não o levantasse, como o declara e diz o Papa Inocência, de feliz memória, na carta ao Concílio de Cartago: “Depois de outrora ter experimentado mal [perpessus] o livre-arbítrio, ao usar insensatamente seus próprios bens, ficou [o homem], ao cair, submerso nas profundezas de seu pecado, e nada achou por onde pudesse dali levantar-se; e, enganado para sempre por sua liberdade, teria ficado prostrado pela opressão desta ruína se mais tarde não o tivesse levantado, com Sua graça, a vinda de Cristo, que, por meio da purificação de um novo nascimento [novae regenerationis], lavou, com as águas do Batismo [sui Baptismatis lavacro], toda a mancha [vitium] passada”.

Da necessidade da graça

2. Ninguém é bom por si mesmo se não lhe der a participação de Si Aquele que é o único Bom [qui solus est bônus] (cf. Mt 19,17; Mc 10,18; Lc 18,19). Isto é declarado no trecho da mesma carta do mesmo Pontífice, que diz: “Acaso podemos, daqui para a frente, esperar algo de bom daqueles espíritos que pensam que seja por mérito próprio que são justos, sem levar em consideração Aquele de quem recebem diariamente a graça e que confiam poderem conseguir tão grande coisa sem Ele? (Inocêncio I, Epistola In requirendis)

3. Ninguém, nem mesmo depois de ter sido renovado pela graça do Batismo, é capaz de escapar das ciladas do demônio e dominar as concupiscências da carne, se não receber de Deus a ajuda diária da perseverança na boa conduta. Isso é confirmado pelo ensinamento do mesmo Leia mais deste post

Doutrina Católica: O pecado original (FINAL)

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Profissão de Fé de Paulo VI (30.06.1968)

A Profissão de Fé, ou Credo do Povo de Deus, encerrou o Ano da Fé proclamado por Paulo VI (1967-1968) e pretendia expressar a Fé Católica “levadas em conta as circunstâncias atuais”. Era lógico, portanto, que o Papa tratasse, com especial atenção, do dogma do pecado original, expondo as verdades fundamentais a que já nos referimos.

TEXTO: AAS 60 (1968) 439-440

Do pecado original

16. Cremos que em Adão todos pecaram, o que significa que a falta original, cometida por ele, fez com que a natureza humana, comum a todos os homens, caísse num estado tal em que padece as conseqüências dessa culpa. Este estado já não é aquele em que ela se encontrava antes em nossos primeiros pais, constituídos que foram em santidade e justiça, estado em que o homem não conhecia o mal nem a morte. A natureza humana assim decaída, despojada do dom da graça que a revestia, ferida nas suas próprias forças naturais e subjugada ao domínio da morte é que é transmitida a todos os homens; e neste sentido é que cada homem nasce em pecado. Professamos, pois, com o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido com a natureza humana, “por propagação [com a geração], não por imitação” e que, portanto, “é inerente a cada um como próprio” [propagatione, non imitatione, idque inesse unicuique proprium].

17. Cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Sacrifício da Cruz, nos resgatou do pecado original e de todos os pecados pessoais cometidos por cada um de nós, de modo que é verdadeira a sentença do Apóstolo: “Onde abundou o pecado superabundou a graça” (Rm 5, 20).

18. Cremos num só Batismo, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo para a remissão dos pecados, e que o Batismo deve ser conferido também “às criancinhas, que ainda não foram capazes de cometer algum pecado pessoal”, de modo que, tendo nascido privadas da graça sobrenatural, renasçam “da água e do Espírito Santo” (Jo 3, 5) para a vida divina em Jesus Cristo.

[FINAL]

Justo Collantes, A Fé Católica – Documentos do Magistério da Igreja

Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Igreja, Teologia, Filosofia

Doutrina Católica: O pecado original (VI)

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Encíclica Humani generis de Pio XII (12.8.1950)

No parágrafo de sua encíclica, dá Pio XII a posição da Igreja a respeito do poligenismo e as implicações que pode ter na doutrina católica sobre o pecado original.

Do poligenismo e do pecado original

Mas quando se trata da outra hipótese, isto é, do chamado poligenismo, não têm a mesma liberdade os filhos da Igreja. Porque os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria dos que opinam que, depois de Adão, existiram na terra verdadeiros homens que não descenderam dele como primeiro pai de todos por geração  natural, ou que Adão significa uma espécie de multidão de primeiros pais. Não se vê, de modo algum, como se possa conciliar esta hipótese com o que ensinam as fontes da verdade revelada e os atos do Magistério da Igreja sobre o pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, transmitido a todos por geração, é inerente a cada um como próprio [de peccato originali, quod procedit ex peccato vere comisso ab uno Adamo, quodque generatione in omnes transfusum, inest unicuique proprium (cf. Rm 5, 12-19)].

 [CONTINUA]

Fonte: Justo Collantes, A Fé Católica – Documentos do Magistério da Igreja

Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Igreja, Teologia

Doutrina Católica: O pecado original (V)

Bula Ex omnibus afflictionibus de Pio V (1.10.1567)

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INTRODUÇÃO: Erros de Miguel Baius

Baius (Michel de Bay: 1513-1589), professor de teologia na Universidade de Louvain desde 1551, foi mandado como teólogo ao Concílio de Trento em maio de 1563. Assistiu às três últimas sessões e colaborou na redação do decreto sobre o purgatório e na elaboração do Catecismo Romano. Tinha um sugestivo método de ensino: reduzia ao máximo a parte escolástica, com preferência para o estudo da Escritura e dos Santos Padres, principalmente Santo Agostinho. Mas frequentemente esquecia a Tradição da Igreja e o desenvolvimento do dogma para deter-se muito literalmente em certas afirmações agostinianas, sem levar em conta a unidade harmônica do pensamento do santo. Não é de estranhar, portanto, que logo viesse a ter dificuldades com as autoridades eclesiásticas.

O erro fundamental de Baius está na concepção excessivamente otimista do estado primitivo do homem. O teólogo de Louvain reconhecia que a justificação e os dons concedidos a Adão não eram parte integrante da natureza humana, mas acrescentava que uma coisa e outra eram exigências da própria natureza do homem (cf. as proposições de n. 21, 23, 24, 26 e 78), e por isso pode-se dizer que eram naturais. Sem elas Deus não poderia criar o homem (prop. 55). Ora, Adão, por seu pecado pessoal, perdeu estes dons, e perdeu-os também para sua descendência, porque todo pecado pode ser transmitido (prop. 52), já que o voluntário não é da essência do pecado (prop. 46). Aqui Baius reage contra Pighi e Contarini, que identificavam o pecado original com o castigo nos descendentes de Adão. Segundo Baius, o pecado original é um pecado pessoal que se identifica com a concupiscência, porque o caráter de voluntário não é requisito para que haja pecado. Não é um mero castigo pela culpa de Adão, mas verdadeiro pecado pessoal. Como poderia Baius defender, depois do Concílio de Trento, que o pecado original se identificasse com a concupiscência? Respondia ele que Leia mais deste post

Doutrina Católica: A graça (II)

O Pelagianismo e o XVI Concílio de Cartago

 
I. O PELAGIANISMO
 

O primeiro ataque perigoso ao dogma católico do pecado original proveio do pelagianismo, que deitava raízes bem mais profundas: na negação da ordem sobrenatural e, portanto, da graça. Segundo os pelagianos Adão foi criado nas mesmas condições em que agora se acha o homem, ou seja, mortal e com todas as qualidades inerentes à natureza humana, sem nenhuma elevação sobrenatural à adoção divina e à participação da vida do Criador. Pelo pecado se tornou merecedor de castigo, mas a culpa – afirmam os pelagianos – permanece circunscrita só a ele, Adão, e não a seus descendentes, a não ser pelo mau exemplo. Além disso, tanto Adão como os seus descendentes possuem uma vontade livre, absolutamente independente de Deus e dotada de poderes ilimitados, quer para o bem, quer para o mal. São dois, portanto, os pilares e linhas mestras desta heresia: um naturalismo que exclui a ordem sobrenatural e a independência da vontade humana com relação a Deus.

É claro que os pelagianos falam também da graça, mas para eles ela não passa de dons externos, como a Revelação, a lei, o exemplo de Cristo e sobretudo a liberdade, que é a capacidade de fazer o bem, que Pelágio chama graça por excelência.

 
 
XVI Concílio de Cartago (1.5.418)
 
Depois da denúncia de Santo Agostinho, foi trabalho deste concílio mostrar a inconsistência das teses pelagianas.

TEXTO: Msi 4, 327-329

3. Igualmente foi decisão [deste concílio] que quem disser que a graça de Deus, pela qual o homem recebe a justificação [iustificatur] por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, só vale para a remissão dos pecados já cometidos, mas não como ajuda para não cometê-los – seja anátema**.

[NOTA: Aqui a graça é designada por gratia qua iustificatur homo; no cânon 5, por gratia iustificationis. Pelo contexto deve-se entender a graça como um auxílio sobrenatural de Deus, essencialmente diferente da natureza. Compreende, portanto, a graça santificante e a graça atual.]

 

Graça e conhecimento

4. Igualmente, quem disser que a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor só nos ajuda a não pecar, porque por ela nos é revelado e manifestado o sentido dos preceitos [intellegentia mandatorum] para sabermos o que devemos desejar, o que evitar, mas que por ela não nos é dado amar também e fazer o que Leia mais deste post

Doutrina Católica: O pecado original (III)

Indiculus (séc. V)

Este documento é uma espécie de Syllabus, no qual se expõe a Fé tradicional sobre a graça, para defender Santo Agostinho de seus adversários. Foi atribuído ao papa Celestino I, porque desde o século VI aparece junto com a carta que este dirigiu aos bispos das Gálias (431), a pedido de São Próspero de Aquitânia e de Santo Hilário de Poitiers, grandes defensores do bispo de Hipona. O indiculus foi provavelmente composto por São Próspero e seu valor foi em toda a parte reconhecido como expressão da Tradição da Igreja sobre a graça. Assim o afirma o Papa São Hormisdas numa carta a Possessor de 13.08.520.

TEXTO: PL 50, 531-532 e 51, 205-206.

Cap. 1. Na desobediência de Adão todos os homens perderam o poder natural [naturalem possibilitatem] e a inocência, e ninguém teria podido, pelo livre-arbítrio, erguer-se do abismo daquela ruína, se a graça do Deus misericordioso não o levantasse, como o declara e diz o Papa Inocência, de feliz memória, na carta ao Concílio de Cartago: “Depois de outrora ter experimentado mal [perpessus] o livre-arbítrio, ao usar insensatamente seus próprios bens, ficou [o homem], ao cair, submerso nas profundezas de seu pecado, e nada achou por onde pudesse dali levantar-se; e, enganado para sempre por sua liberdade, teria ficado prostrado pela opressão desta ruína se mais tarde não o tivesse levantado, com Sua graça, a vinda de Cristo, que, por meio da purificação de um novo nascimento [novae regenerationis], lavou, com as águas do Batismo [sui Baptismatis lavacro], toda a mancha [vitium] passada”.

Carta Sicut rationi do Papa Hormisdas (13.8.520)

A autoridade do Indiculus foi confirmada pelo Papa Hormisdas nesta carta ao bispo africano Possessor.

TEXTO: PL 63, 493.

5. O que crê e professa a Igreja Romana, isto é, a Igreja Católica, sobre o livre-arbítrio e a graça de Deus – ainda que possa ser abundantemente conhecido por vários livros do Bem-Aventurado Agostinho, principalmente os dirigidos a Hilário e a Próspero – está contido também em documentos específicos dos arquivos eclesiásticos; se não os Leia mais deste post

Doutrina Católica: O pecado original (I)

INTRODUÇÃO

Uma antropologia completa deve levar em conta os dados da Revelação, porque o homem não é só um ser criado como os outros, mas tem um fim próprio (uma teleologia própria) ligado à natureza de ser inteligente. Todo ser criado tem uma teleologia que o transcende, pelo próprio fato de ser obra de um Deus transcendente. Instruídos, no entanto, pela Revelação Divina, sabemos que o homem foi chamado, já desde suas origens, a participar intimamente da vida divina e da familiaridade com Deus (justiça original); e que, por uma livre e pessoal transgressão do plano divino, ele se tornou réu de culpa, perdendo com isso os direitos de filho, que, muito acima dos dons puramente naturais, Deus lhe concedera (pecado original originante). Esta perda voluntária e responsável da adoção inefável no seio da família divina é transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem (pecado original originado).

Com efeito, por este pecado pessoal primitivo, toda a humanidade nasce ferida na sua íntima elevação sobrenatural, isto é, nasce privada do que de mais sublime pôs nela a livre bondade criadora de Deus: a condição de filho adotivo. Tal privação, causada pelo pecado pessoal do primeiro homem, torna-se, em cada um de seus descendentes, pecado da natureza, próprio de cada indivíduo, pelo fato mesmo de ser homem. Sendo esta condição de filho um dom gratuito de Deus, é evidente que, por suas próprias forças, jamais poderia o homem recuperá-la.

Sem dúvida, isto não se pode conhecer pela razão, nem existe documento histórico capaz de dissipar as névoas que envolvem a origem da humanidade. Mas o dogma do pecado original é o núcleo da antropologia revelada, sem o qual não se pode compreender a Leia mais deste post

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