Tomás explica: A verdade da razão natural não é contrária à verdade da fé cristã

Rembrandt (1606-1669), O Apóstolo Paulo

1. Embora a supracitada verdade da fé cristã exceda a capacidade da razão humana, os princípios que a razão tem postos em si pela natureza não podem ser contrários àquela verdade.

2. É certo que são veríssimos e que foram colocados na razão pela natureza, de modo que nem se pode cogitar que sejam falsos. Nem tampouco é permitido pensar ser falso o conteúdo da fé, já que com tanta evidência recebeu a confirmação divina. Ora, porque só o falso é contrário ao verdadeiro, o que se manifesta claramente ao se verificarem as definições de ambos, é impossível que a supracitada verdade da fé seja contrária aos princípios conhecidos naturalmente pela razão.

3. Além disso, na ciência do mestre está contido o que ele infunde na alma do discípulo, a não ser que o ensino seja fictício. Mas tal não se pode atribuir a Deus. Ora, o conhecimento dos princípios naturalmente evidentes é infundido em nós por Deus, pois Deus é o autor da natureza. Por conseguinte, esses princípios estão também contidos na sabedoria divina. Assim também, tudo que é contrário a eles contraria a sabedoria divina e não pode estar em Deus. Logo, as verdades recebidas pela revelação divina não podem ser contrárias ao conhecimento natural.

4. Além disso, o nosso intelecto fica impedido de conhecer quando está diante de razões contrárias e, então, não pode proceder para alcançar a verdade. Ora, se razões contrárias fossem em nós infundidas por Deus, o nosso intelecto ficaria impedido de conhecer a Leia mais deste post

Tomás explica: Embora estejam acima da razão, não é leviano crer nas verdades da fé

Gustave Doré (1832-1883), A Mutilação de Maomé
 
Enquanto a olhá-lo eu, fixamente, estaco,
fitando-me, co’ as mãos rasga-se o peito,
e diz: “Agora vê como me achaco;
 
vê como Maomé está desfeito,
vê em frente Ali, e dele ouve os gemidos,
co’ o rosto de um só golpe contrafeito.
 
E os outros todos, que vês reunidos,
semeadores de escândalo e heresia
em vida, aqui por isso são fendidos.

 Divina Comédia, Inferno, Canto XXVIII 

1. Aqueles que aceitam pela fé as verdades que estão fora da experiência humana não crêem levianamente, como aqueles que, segundo são Pedro, seguem fábulas engenhosas (2 Pe 1, 16).

2. Os segredos da sabedoria divina, ela mesma – que conhece tudo perfeitamente – dignou-se revelar aos homens, mostrando-lhes a sua presença, a verdade da sua doutrina, e inspirando-os, com testemunhos condizentes. Ademais, para confirmar as verdades que excedem o conhecimento natural, realizou ações visíveis que superam a capacidade de toda a natureza, como sejam a cura de doenças, ressurreição dos mortos e maravilhosas mudanças nos corpos celestes. Mais maravilhoso ainda é, inspirando as mentes humanas, ter feito que homens ignorantes e rudes, enriquecidos pelos dons do Espírito Santo, adquirissem instantaneamente tão elevada sabedoria e eloquência

Depois de termos considerado tais fatos, acrescente-se agora, para confirmação da eficácia dos mesmos, que uma enorme multidão de homens, não só os rudes como também os sábios, a correu para a fé cristã. Assim o fizeram, não premidos pela violência das armas, nem pela promessa de prazer, mas também – o que é maravilhoso – sofrendo a perseguição dos tiranos. Além disso, na fé cristã, são expostas as virtudes que excedem todo o intelecto humano, os prazeres são reprimidos e se ensina o desprezo das coisas do mundo. Ora, terem os espíritos humanos concordado com tudo isto é ainda maior milagre e claro efeito da inspiração divina.

Essas coisas não aconteceram de improviso ou por acaso, mas por disposição divina, porque focou evidenciado que elas se realizaram mais tarde, porquanto Deus as havia predito pelos Leia mais deste post

Tomás explica: A verdade divina acessível à razão é convenientemente proposta à fé dos homens

Caravaggio, A Inspiração de São Mateus (1602), Igreja San Luigi dei Francesi, Roma

1. Como se viu, há duas ordens de verdades referentes às realidades divinas inteligíveis: uma, a das verdades possíveis de serem investigadas pela razão humana; outra, a daquelas que estão acima de toda capacidade desta razão. Ambas, no entanto, são convenientemente propostas por Deus aos homens para serem acreditadas.

2. Neste capítulo tratar-se-á, em primeiro lugar, das verdades possíveis de serem investigadas pela razão. Assim, não será tido como vão que seja proposto para fé, por inspiração sobrenatural, aquilo que a razão por si mesma é capaz de atingir.

Ora, se essas verdades fossem abandonadas à investigação só da razão, três inconvenientes surgiriam.

3. Um primeiro, porque, se assim acontecesse, poucos homens chegariam ao conhecimento de Deus. Muitos estariam impedidos de descobrir a verdade, que é fruto de assídua investigação, por três motivos.

Alguns, devido à própria constituição natural defeituosa que os dispõe para o conhecimento; estes tais por nenhum esforço poderiam alcançar o grau supremo do conhecimento humano, que consiste no conhecimento de Deus.

Outros, devido aos cuidados necessários para o sustento da família. Convém, sem dúvida, que dentre os homens alguns se entreguem ao cuidado das coisas temporais. Estes, porém, não podem dispender o tempo necessário para o lazer exigido pela investigação contemplativa para alcançar o máximo desta investigação, que consiste justamente no conhecimento de Deus.

Outros, por fim, são impedidos pela preguiça. Ora, para o conhecimento das verdades divinas investigáveis pela razão há necessidade de Leia mais deste post

Chestertoninas: A razão e os dogmas

Se a razão humana pode evoluir ou não, é um problema muito pouco discutido, e não há nada mais perigoso do que fundamentar nossa filosofia social numa teoria que é discutível, mas que não foi discutida. Mas se admitirmos, só para argumentar, que houve no passado, ou que haverá no futuro, algo que se assemelhe ao crescimento ou ao aprimoramento da inteligência humana propriamente dita, haverá ainda um forte óbice a ser levantado contra a versão moderna do aprimoramento. O vício da noção moderna do progresso mental é estar sempre relacionado ao rompimento de laços, à abolição de fronteiras, à rejeição de dogmas. Mas se houver algo parecido com um crescimento mental, isso deve significar crescimento em direção a convicções cada vez mais definidas, que mais e mais vão se tornando dogmas. O cérebro humano é uma máquina de tirar conclusões; se não puder concluir, enferruja. Quando ouvimos falar de um homem inteligente demais para ser crível, escutamos algo que se assemelha a uma contradição em termos. É como ouvir a respeito de um prego bom demais para fixar um carpete; ou de um ferrolho muito firme para manter a porta trancada. O homem dificilmente pode ser definido, à moda de Carlyle, como um animal que fabrica ferramentas. Formigas, castores e muitos outros animais fabricam ferramentas, no sentido de utensílio. O homem pode ser definido como um animal que fabrica dogmas. À medida que empilha doutrina sobre doutrina e conclusão sobre conclusão, ao formar algum enorme esquema filosófico e religioso, está, no único sentido legítimo de que a expressão é capaz, se tornando mais e mais humano. Ao abandonar doutrina após doutrina, num refinado ceticismo, ao recusar filiar-se a um sistema, ao dizer que superou definições, ao dizer que duvida da finalidade, quando, na própria imaginação, senta-se como Deus, não professando nenhum credo, mas contemplando todos, então está, por intermédio do mesmo processo, imergindo lentamente na indistinção dos animais errantes e da inconsciência da grama. Árvores não têm dogmas. Nabos são particularmente tolerantes.

G. K. Chesterton, Hereges, Ecclesiae, pág. 257-258

Chestertoninas: A razão é sempre racional

Os dois vultos que eles seguiam rastejavam como moscas pretas através do enorme contorno verde de um monte. Era evidente que estavam profundamente entretidos a conversar e talvez não reparassem para onde se dirigiam, mas não havia dúvida que se estavam dirigindo para as elevações mais ermas e calmas do Heath. Os seus perseguidores ao ganharem distância sobre eles  tinham de tomar as posições pouco dignificantes dos caçadores de espera, agachando-se atrás de moitas e até rastejando deitados na erva cerrada. Por meio destas deselegantes habilidades, os caçadores até chegaram suficientemente próximo da presa para ouvirem o rumor da discussão, mas nenhuma palavra era perceptível a não ser a palavra “razão”, repetindo-se frequentemente num tom de voz excitado e quase infantil. Uma vez numa depressão abrupta do terreno e de um denso emaranhado de moitas, os detetives chegaram a perder de vista os dois vultos que estavam seguindo. Durante uns angustiantes dez minutos perderam a pista e quando a reencontraram ela levava ao cume de um monte sobranceiro a um anfiteatro com o cenário de um esplêndido e solitário pôr do Sol. Debaixo de uma árvore neste local imponente, mas desprezado, havia um velho banco de madeira em ruínas. Neste banco estavam sentados os dois padres conversando seriamente. Os deslumbrantes azul e verde ainda estavam presos ao horizonte que escurecia, mas a abóbada por cima deles estava mudando de verde-pavão para azul-pavão eas estrelas destacavam-se cada vez mais como jóias verdadeiras. Acenando silenciosamente para os seus ajudantes, Valentin conseguiu rastejar por detrás da grande árvore frondosa e, permanecendo aí num silêncio sepulcral, ouviu pela primeira vez as palavras dos estranhos padres.

Depois de os ter escutado durante um minuto e meio foi dominado por uma dúvida diabólica. Talvez ele estivesse arrastado os dois polícias ingleses pelos terrenos de uma charneca noturna para uma missão tão louca como procurar uma agulha num palheiro. Porque os dois padres estavam conversando exatamente como padres, devotamente, com sabedoria e vagar, sobre os enigmas mais elevados da teologia. O padre baixinho do Essex falava com mais simplicidade com a sua cara redonda voltada para as estrelas revigorantes, o outro falava com a cabeça inclinada como se não fosse digno de contemplá-las. Mas uma conversa tão clerical, tão inocente como aquela poderia ser ouvida num claustro branco italiano ou numa escura catedral espanhola.

A primeira coisa que escutou foi o final de uma das frases do Padre Brown, que terminava assim:

– … o que eles realmente queriam dizer na Idade Média a respeito dos céus serem incorruptíveis.

O padre mais alto acenou com a cabeça inclinada e disse:

– Ah, sim, estes infiéis modernos invocam a razão, mas quem é que pode olhar para aqueles milhões de mundos e não sentir que podem muito bem haver universos maravilhosos por cima de nós onde a razão é totalmente irracional?

– Não – disse o outro padre – a razão é sempre racional, mesmo no derradeiro limbo, no limite perdido das coisas. Eu sei que pessoas acusam a Igreja de rebaixar a razão, mas é exatamente o contrário. Só a Igreja no mundo torna a razão realmente suprema. Só a Igreja no mundo afirma que Deus está vinculado pela razão.

O outro padre levantou a sua face austera para o céu brilhante e disse:

– No entanto, quem sabe se naquele infinito universo…?

– Apenas infinito fisicamente – disse o padre baixinho, voltando-se vivamente no banco, – não no sentido de escapar às leis da verdade.

Valentin, por trás da árvore, estava puxando violentamente as unhas das mãos numa fúria silenciosa. Quase lhe parecia ouvir os risinhos dos detetives ingleses que ele tinha trazido até tão longe atrás de uma fantástica conjectura apenas para ouvirem a tagarelice metafísica de dois serenos velhos padres. Na sua impaciência não conseguiu ouvir a resposta igualmente elaborada do clérigo alto e quando se pôs à escuta de novo era outra vez o Padre Brown que falava:

– A razão e justiça abarcam a estrela mais remota e solitária. Olhe para aquelas estrelas. Não parecem diamantes e safiras? Pois bem, pode imaginar qualquer louca botânica ou geologia que quiser. Pense em florestas de diamantes com folhas de brilhantes. Pense que a lua é azul, uma única e enorme safira. Mas não julgue que toda essa louca astronomia iria fazer a mais pequena diferença à razão e à justiça do comportamento. Em planícies de opalas, em penhas talhados de pérolas, iria ainda encontra uma tabuleta como aviso: “NÃO ROUBARÁS”.

G. K. Chesterton, A Inocência do Padre Brown

Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Igreja, Teologia, Filosofia

A consciência segundo Tomás de Aquino – Parte 2

Juan de Peñalosa, Santo Tomás de Aquino (aprox. 1610), Museo de Bellas Artes, Córdoba

Clique aqui para ler a parte 1

Só se compreendem essas fórmulas absolutas que identificam a voz da consciência com a voz de Deus à luz de seu contexto. Elas supõem a conformidade voluntariamente procurada da razão com a lei natural e ademais com Deus, mas, além dessa dependência fundadora, elas supõem ainda um ajuste virtuoso em relação aos outros homens. Tomás faz explicitamente a ligação entre essas duas atitudes em seu comentário à primeira carta a Timóteo (1, 5): “O fim do preceito é a caridade que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem fingimento”.

Como a caridade é o fim do preceito? … [É necessário saber que todos os mandamentos se ordenam a promover os atos das virtudes e que as virtudes se agenciam entre elas num organismo do qual a caridade é o cume]. As virtudes teologais têm o fim último por objeto. As outras têm por objeto o que permite atingir esse fim. Assim, todas as outras virtudes se referem às virtudes teologais como a seu fim. Entre as virtudes teologais, a que se aproxima mais do fim último tem razão de fim para as outras: a fé o mostra, a esperança tende para ele, a caridade une a ele. Todas se ordenam, pois, à caridade, e é assim que a caridade é o fim de todos os mandamentos. … As outras virtudes retificam a pessoa em relação ao próximo, daí vem que ele [o Apóstolo] tem uma boa consciência, porque não faz a ninguém o que não quereria que se fizesse a ele … O que é contra o próximo é, portanto, também contra a consciência. Por isso ele fala de uma “boa consciência”. Aquele que não tem boa consciência não pode amar a Deus sinceramente, porque o que não tem boa consciência teme o castigo. Ora, não há temor no amor, o temor afasta Deus em vez de unir a ele. É assim que os mandamentos, retificando a consciência, dispõem para a caridade.

Super I ad Tim. 1,5, lect. 1, n. 13-16

 

Esse texto, precioso para o seguimento de nosso propósito, dá sobre a consciência uma idéia bastante diferente da concepção enfraquecida evocada um pouco antes. Se se afirmasse que só a consciência dos santos é infalível, não se trairia o pensamento de Tomás; ele diz com efeito: “A testemunha infalível dos santos é sua Leia mais deste post

A consciência segundo Tomás de Aquino – Parte 1

Representação gráfica da consciência, do séc. XVII (Robert Fudd)

Leia também os artigos sobre a Lei Moral, em Filosofia e Teologia

Freqüentemente em nossa época, essa expressão deveria, à primeira vista, facilitar o acesso de um espírito contemporâneo à doutrina de Tomás de Aquino. Não há palavras bastante fortes para afirmar e repetir que se deve sempre seguir a própria consciência – mesmo quando ela se engana! É necessário, no entanto, olhar mais de perto. Além de a palavra não ter sempre o mesmo sentido para ele e para nós, é utilizada num contexto profundamente diferente. Para nós, a consciência tem ressonância eminentemente subjetiva. Vista como instância última diante da qual somos responsáveis, ela é algumas vezes concebida de maneira simplista, a ponto de ser, um pouco ingenuamente, identificada com o que pensamos espontaneamente ou com as reações de nosso meio de origem. Agir segundo a própria consciência seria, então, se conduzir segundo o conformismo ambiente.

Para Tomás, as coisas são menos simples, e ele faz uma idéia mais elevada da grandeza do homem e de sua consciência. Ela é certamente uma instância contra a qual não se pode ir, mas não é a última instância. Nossa dignidade de pessoa humana não se situa numa reivindicação de autonomia absoluta diante de Deus, mas na aceitação de nossa dependência dele. Se quisermos compreender o ensinamento do Mestre de Aquino, deveremos retomá-lo de mais alto. Sem fazer uma exposição completa e ainda menos entrar nos debates contemporâneos, é preciso ao menos lembrar o mais exatamente possível de que se trata, e tentar retirar daí o interesse para a teologia espiritual.

Deve-se, em primeiro lugar, lembrar aquilo que foi dito no capítulo precedente sobre a lei natural, participação na criatura racional da lei eterna, da Providência Divina. Essa participação se realiza por um habitus próprio que Tomás chama, de maneira estranha para nós, de “sindérese”. Esse termo, recebido de São Jerônimo – que o traduz por “centelha da consciência”, e que ele assegura que não Leia mais deste post

Fragmentos: A providência e a criatura racional

Quando algum todo não é o último fim, mas se ordena para um fim ulterior, o fim da parte não é o todo, mas outra coisa. O conjunto das criaturas ao qual é referido o homem como a parte ao todo não é o último fim, mas se ordena para Deus, como para seu último fim. Por isso, o bem que representa o universo não é o último fim do homem, mas o próprio Deus.

(Suma Teológica I-II, q.2 a.8)

É manifesto que a divina providência se estende a todas as coisas. Deve-se, entretanto, observar que, entre todas as outras criaturas, existe um regime providencial particular para as criaturas intelectuais e racionais. Elas ultrapassam as outras tanto pela perfeição de sua natureza quanto pela dignidade de seu fim.

Pela perfeição de sua natureza, porque apenas a criatura racional tem o domínio de seus atos, determinando-se ela mesma à sua operação própria, enquanto as outras criaturas são muito mais movidas do que se movem a si mesmas … Pela dignidade de seu fim, porque apenas a criatura intelectual chega a alcançar o fim último do universo por sua operação, conhecendo e amando Deus; enquanto as outras criaturas não podem chegar a esse fim último a não ser por uma certa semelhança participada.

(Suma contra gentios III, 111 n. 2.855)

Apenas a criatura racional é conduzida por Deus em sua atividade, referindo-se não somente à espécie, mas ainda ao indivíduo … A criatura racional depende da divina Providência como governada e digna de atenção por ela mesma e não somente em vista da espécie.

(Suma contra gentios III, 113)

As criaturas menos nobres existem para as mais nobres; por exemplo, as criaturas inferiores ao homem existem para Leia mais deste post

A resposta cristã ao racionalismo

Beato John Henry Newman (1801-1890)

Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap.

3ª Pregação do Advento

“ESTAI SEMPRE PRONTOS A DAR A RAZÃO DA VOSSA ESPERANÇA.”

(1 Pe 3,15)

A resposta cristã ao racionalismo


1. A razão usurpadora

O terceiro obstáculo que faz parte da cultura moderna, “refratária” ao Evangelho, é o racionalismo. Sobre isso falaremos nesta última meditação do Advento.

O cardeal e, agora, Beato John Henry Newman, deixou-nos um discurso memorável, proferido em 11 de dezembro de 1831, na Universidade de Oxford, intitulado The Usurpation of Raison, a usurpação ou a prevaricação da razão. Neste título já está a definição do que entendemos como racionalismo1. Numa nota explicativa a este discurso, escrita no prefácio à sua terceira edição, de 1871, o autor explica o que quer dizer com esse termo. Por usurpação da razão – diz – se entende “certo abuso generalizado dessa faculdade quando se fala de religião sem um conhecimento íntimo ou sem o respeito devido aos princípios fundamentais desta. Essa ‘razão’ é chamada ‘sabedoria do mundo’ nas Escrituras é a compreensão de religião dos que têm a mentalidade secularista e se baseiam em máximas do mundo, que lhes são intrinsecamente alheias” 2.

Em outro de seus sermões na universidade, intitulado “Fé e Razão comparadas”, Newman ilustra por que a razão não pode ser o juiz supremo em matéria de religião e de fé, com a analogia da consciência:

“Ninguém – escreve – dirá que a consciência se opõe à razão, ou que seus preceitos não podem ser apresentados em forma de argumento; no entanto, quem, a partir disso, argumentará que a consciência não é um princípio original, mas que, para atuar, precisa atender o resultado de um processo lógico-racional? A razão analisa os fundamentos e os motivos da ação, sem ser ela mesma um destes Leia mais deste post

O Ser (I) – Parmênides: o princípio como ser

Rafael, Escola de Atenas, Palácio Apostólico, Vaticano

Aristóteles nos informa que a metafísica, que é o mesmo que a filosofia, iniciou-se com a pergunta e a pesquisa a respeito do princípio de todas as coisas. Leiamos o texto: “A maioria dos que por primeiro filosofaram pensaram que princípios de todas as coisas fossem apenas os materiais. Com efeito afirmam que aquilo de que são constituídos os seres e aquilo de que originariamente derivam e em que finalmente se resolvem, é elemento e princípio dos seres, à medida que é uma realidade que permanece idêntica também em meio à mudança dos seus estados. E é por esta razão que acreditam que nada seja gerado e nada seja destruído, uma vez que uma realidade deste tipo permanece sempre. E assim como não dizemos que Sócrates é gerado em sentido absoluto quando se torna belo ou músico, nem dizemos que ele perece quando perde estes modos de ser, pelo simples fato de que o substrato – quer dizer, o próprio Sócrates – continua a existir, assim também devemos dizer que não se corrompe, em sentido absoluto, nenhuma das outras coisas: com efeito, deve existir alguma realidade natural (uma só ou mais de uma) da qual derivam todas as outras coisas, enquanto ela continua a existir inalterada”.

(Aristóteles, Metafísica)

O devir exerce sua função de princípio enquanto é. Isto significa que o devir remete a algo, que é aquilo pelo qual (= princípio) o devir desenvolve a sua função unificadora: em última análise, não é o devir que é princípio, mas aquilo pelo qual o devir é. O princípio é, portanto, o ser, ou seja, o princípio é aquilo que se apresenta com a universalíssima determinação pela qual não é nada, mas é ser. Captar, entretanto, o ser como princípio comporta uma série de implicações.

a) Só o ser pode exercer a função de princípio, pois não é possível ir além do ser. Enquanto todos os outros princípio permanecem ultrapassáveis, ou seja, a respeito deles se pode, e se deve, fazer uma pergunta ulterior, um por que ulterior, ultrapassar o ser significa cair no nada, quer dizer, no não-ser, que não é. É neste sentido que o ser possui uma primariedade absoluta.

b) O ser não pode ser outra coisa senão ser. Rigorosamente pensando, ou seja, atendo-nos ao puro plano do ser, o outro diferente do ser é essencialmente o nada, quer dizer, voltando ao que já foi dito, o não-ser, que não é.

c) O ser, não podendo ser outra coisa senão ser, não pode devir, isto é, não pode nem ser gerado (pois toda geração implica que o ser derive do não-ser) nem se Leia mais deste post

O princípio de não-contradição

Antonio Ciseri (1821-1891), Ecce Homo

“Tu o dizes: eu sou rei. Para isso nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Quem é da verdade escuta a minha voz”.

Disse-lhe Pilatos: “Que é a verdade?”

“…esta função concreta, esta valência de concretude desenvolvida pelo princípio de não-contradição em relação ao princípio de identidade, é a função que o mesmo princípio desenvolve em relação a todos os outros princípios: estes são abstratos, isto é, não plena e completamente verdadeiros, até que sejam reconduzidos e reduzidos ao princípio de não-contradição. Por isso este se revela como o princípio absoluto do ser.”

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1. “Princípios que são o próprio ser

A formulação “princípios do ser” deve-se entender no sentido do genitivo subjetivo: não princípios que dominam o ser, mas princípios que o próprio ser é, que promulga ou explicita em si e por si mesmo. E também aqui o plural, como o dos transcendentais, entende-se no sentido da perfeita convertibilidade e, portanto, em sentido unitário. Os princípios dizem o ser; o ser se exprime nos princípios, os quais são enumerados como princípio de identidade, princípio de não-contradição, princípio de razão suficiente, princípio do terceiro excluído, princípio da impossibilidade do progresso ou do regresso ao infinito. Na realidade, eles se unificam no princípio de não-contradição, como aquele no qual se resolvem e do qual são explicitações ulteriores. Deve-se, portanto, dizer que o ser é o princípio de não-contradição, e reciprocamente; os outros princípios explicitam o ser enquanto explicitam o princípio de não contradição e são perfeitamente convertíveis com ele.

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1.1 O significado de princípio

Com a finalidade de uma correta compreensão dos princípios do ser é indispensável clarificar o significado de princípio. Partamos da definição que lhe dá Aristóteles: Leia mais deste post

Tomás responde: Todos os pecados humanos vêm da sugestão do diabo?

Fra Angelico, O Juízo Final (1432-1435), detalhe

Parece que todos os pecados humanos vêm da sugestão do diabo:

1. Com efeito, Dionísio afirma que a multidão dos demônios é a causa de todos os males para si mesmos e para os outros.

2. Além disso, segundo o Evangelho de João: “quem comete o pecado é escravo do pecado” (8, 34). Ora, como diz a segunda Carta de Pedro: “Alguém se entrega à escravidão daquele por quem foi vencido” (2, 19). Logo, aquele que comete o pecado é vencido pelo diabo.

3. Ademais, Gregório diz que o pecado do diabo é irreparável, porque ele caiu sem sugestão de ninguém. Por conseguinte, se os homens pecam pelo livre-arbítrio e sem sugestão de ninguém Leia mais deste post

Os grandes temas da Idade Média (III): A razão

A “deusa razão”, representada por uma prostituta, sendo carregada pelas ruas de Paris

“Se Deus é logos, segundo São João, e o homem também vem definido pelo logos, há adequação entre ambos e é possível um conhecimento da essência divina; pode haver uma teologia racional, embora fundada sobre os dados da revelação.”

“No momento em que o nominalismo de Ockham reduziu a razão a uma coisa de foro íntimo do homem, uma determinação sua puramente humana, e não essência da Divindade, neste momento o espírito humano também fica segregado desta. Portanto, sozinho, sem mundo e sem Deus, o espírito humano começa a se sentir inseguro no universo” (Zubiri: Hegel y El problema metafísico).

O logos aparece como um motivo cristão essencial desde os primeiros momentos. O começo do Evangelho de São João diz taxativamente que no princípio era o verbo, o logos, e que Deus era o logos. Isso quer dizer que Deus é, em primeiro lugar Leia mais deste post

A Lei Moral 4: Há em nós uma lei natural?

Faith and Reason united, with St Thomas Aquinas teaching in the background and the inscription: “divinarum veritatum splendor, animo exceptus, ipsam juvat intelligentiam“, from Leo XIII’s encyclical Aeterni Patris (13). Painting by German painter Ludwig Seitz (1844–1908), Galleria dei Candelabri, Vatican (clique para ampliar).
Leia também:
A Lei Moral, ou “Como deixar um ateu em maus lençóis”
A Lei Moral 2: Lewis e a lei natural
A Lei Moral 3: O Esplendor da Verdade

Parece que não há em nós uma lei natural:

1. Com efeito, o homem é suficientemente governado pela lei eterna: diz Agostinho que “a lei eterna é aquela pela qual é justo que todas as coisas sejam ordenadíssimas”. Ora, a natureza não se excede nas coisas supérfluas, como não falta nas necessárias. Logo, não há uma lei natural para o homem.

2. Além disso, pela lei ordena-se o homem em seus atos para o fim, como acima se mostrou. Ora, a ordenação dos atos humanos para o fim não é pela natureza, como acontece nas criaturas irracionais, que só pelo apetite natural agem em razão do fim; mas age o homem Leia mais deste post

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