A necessidade da Graça II – Sem a graça pode o homem querer e fazer o bem?
5 novembro, 2019 Deixe um comentário
Parece que o homem pode querer e fazer o bem sem a graça:
1. Com efeito, está no poder do homem aquilo sobre o quê ele é senhor. Ora, como foi dito acima (I-II, q.1, a.1 e q.13, a.6), o homem é senhor de seus atos e principalmente do ato do querer. Logo, o homem pode querer e fazer o bem por si mesmo, sem o auxílio da graça.
2. Além disso, cada um tem mais poder sobre aquilo que é conforme à sua natureza do que sobre aquilo que é estranho a essa natureza. Ora, o pecado, como disse Damasceno, é contrário à natureza, e o ato da virtude, como foi dito, está de acordo com a natureza humana. Logo, o ser humano por si mesmo pode pecar, e com maior razão pode querer e fazer o bem por si mesmo.
3. Ademais, o bem do intelecto é o verdadeiro, disse o Filósofo. Ora, o intelecto pode conhecer o verdadeiro por si mesmo, uma vez que toda coisa pode realizar por si mesma a operação natural. Logo, com maior razão pode o homem querer e fazer por si mesmo o bem.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, como disse o Apóstolo: “Não pertence àquele que quer, o querer, nem ao que corre, o correr, mas a Deus que é misericordioso” (Rm 9, 16). E Agostinho diz que “sem a graça ninguém pode absolutamente fazer o bem: seja pensando, querendo, amando, ou agindo.
A natureza humana pode ser considerada em dois aspectos diferentes: em sua integridade, tal como existiu em nosso primeiro pai antes do pecado; ou no estado de corrupção no qual estamos depois do pecado original. Nos dois estados, ela tem necessidade para fazer e querer o bem, de qualquer ordem que seja, do auxílio divino, considerado como primeiro movente, como foi dito. No estado de integridade, com respeito à capacidade da potência operativa, o homem podia, com suas forças naturais, querer e fazer o bem proporcionado à sua natureza, como é o bem da virtude adquirida, mas não um bem que a ultrapassa, como é o bem da virtude infusa. No estado de corrupção, o homem falha naquilo que lhe é possível pela sua natureza, a tal ponto que ele não pode mais por suas forças naturais realizar totalmente o bem proporcionado à sua natureza. Entretanto, o pecado não corrompeu totalmente a natureza humana a ponto de privá-la de todo bem que lhe é natural. Assim, mesmo neste estado de corrupção o homem pode ainda fazer, por sua potência natural, algum bem particular, como construir casas, plantar vinhas, e outros trabalhos do mesmo gênero. Mas ele não é capaz de realizar em sua totalidade o bem que lhe é conatural, sem alguma falha. Ele parece um enfermo que pode ainda executar sozinho alguns movimentos, mas não pode mover-se perfeitamente como alguém em boa saúde, enquanto não obtiver a cura com a ajuda da medicina.
Assim, no estado de integridade, o homem tinha necessidade de uma força acrescentada gratuitamente àquela de sua natureza unicamente para realizar e querer o bem sobrenatural. No estado de corrupção, tem necessidade disso para duas coisas: primeiro, para que seja curado, e depois, para realizar o bem da ordem sobrenatural, isto é, o bem meritório. Finalmente, no dois casos, é preciso sempre uma ajuda divina que dá a moção para agir bem.
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. O homem é senhor de seus atos, tanto do querer, como do não querer, porque sua razão delibera e pode inclinar-se a uma ou outra parte. Mas, se ele é senhor de deliberar ou ou não deliberar, isso se deve a uma deliberação precedente. E como não se pode ir ao infinito, é preciso no fim reconhecer que o livre-arbítrio humano é movido por algum princípio exterior, acima da mente humana, isto é, Deus, como o próprio Filósofo o demonstra. Portanto, a mente humana mesmo sã não possui um tal domínio de seus atos que não necessite ser movida por Deus. Com maior razão o livre-arbítrio humano enfermo depois do pecado, está impedido de fazer o bem pela corrupção da natureza.
2. Pecar não é outra coisa senão afastar-se do bem que convém a alguém segundo sua natureza. Toda criatura só tem a existência porque a recebe de um outro, mas por si mesma não é nada. E assim, necessita ser conservada no bem conveniente à sua natureza por um outro. Pode por si mesma decair do bem, assim como por si mesma pode decair para o não ser, se não for conservada por Deus.
3. O ser humano não pode conhecer até mesmo o verdadeiro sem o auxílio divino, como foi dito no artigo anterior. Entretanto, o pecado corrompeu mais a natureza humana em seu apetite do bem do que no conhecimento do verdadeiro
Suma Teológica I-II, q. 109, a.2
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