
Syme, naquele tempo, andava mal vestido. Usava um chapéu alto fora de moda, andava embrulhado num sobretudo preto e roto, ainda mais fora de moda, e aquele vestuário dava-lhe um aspecto de cínico de romance de Dickens ou Bulwer Lytton. A barba e o cabelo amarelado também andavam mais hirsutos e despenteados do que quando, muito mais tarde e já aparados e penteados, apareceram nos jardins de Saffron Park. Pendia-lhe dos dentes cerrados um charuto negro, esguio e comprido, comprado no Solio por dois pence, e no conjunto passava por um espécime muito satisfatório dos anarquistas a quem votara guerra santa. Foi talvez por isso que um polícia se dirigiu a ele e lhe deu as boas-tardes. Syme, numa das suas crises de temor mórbido pela sorte da humanidade, pareceu picado pela simples solidez do automático guarda, um mero vulto azulado no crepúsculo.
– Com que então boa tarde? – disse rispidamente. Vocês seriam capazes de chamar boa-tarde ao fim do mundo. Olhe para aquele pôr de Sol vermelho de sangue e para o rio sangrento! Mesmo que se tratasse de facto de sangue humano, você continuaria na calma, à procura de um pobre inocente vagabundo a quem pudesse mandar circular. Vocês, os polícias, são cruéis para os pobres, mas, se não fosse a vossa calma, talvez me sentisse capaz de até essa crueldade perdoar.
– Se somos calmos é porque temos a calma da resistência organizada.
– Hein? – proferiu Syme, boquiaberto.
– O soldado tem de ser calmo no mais aceso da batalha. A compostura do exército é a ira da nação.
– Valha-me Deus, as Board-Schools! Isto é que é a educação laica?
– Não – respondeu tristemente o polícia. – Nunca tive nenhuma dessas regalias, as Board-Schools ainda não existiam no meu tempo. Receio que a educação que recebi fosse muito grosseira e antiquada.
– Onde a recebeu?
– Oh, em Harrow – respondeu o guarda.
– As simpatias de classe, por mais falsas que sejam, são, não obstante, para muitas pessoas as coisas mais verdadeiras do mundo. – E Syme sentiu-as explodirem dentro de si antes que pudesse refreá-las.
– Mas, meu Deus, homem! Você nunca devia ser polícia.
O guarda suspirou e abanou a cabeça.
– Bem sei – disse solenemente -, bem sei que não sou digno.
– Mas por que se alistou na Polícia? – inquiriu Syme, com curiosidade malcriada.
– Pela mesma razão porque você a insultou. Descobri que no serviço havia um lugar especial para aqueles cujos receios pela humanidade se relacionavam mais com as aberrações do intelecto científico do que com as erupções, normais e desculpáveis, se bem que excessivas, da vontade humana. Espero que me faça compreender.
– Se pergunta se se exprime com clareza, suponho que assim é. Mas agora, se quer dizer que se faz compreender, isso nunca. Como explica que um homem como você esteja, de capacete azul na cabeça, a falar de filosofia junto às margens do Tamisa?
– É evidente que não ouviu falar nos mais recentes métodos do nosso sistema policial, e não me admiro, pois não os revelamos às classes educadas, pois nelas se encontram a maior parte dos nossos inimigos. Mas parece-me que você atravessa o estado de espírito apropriado. Creio que está quase a unir-se a nós.
– Unir-me a quem?
– Explicarei tudo – respondeu o policial com lentidão. – A situação é a seguinte: à testa de uma das nossas repartições está um dos mais célebres detectives europeus, que é há muito da opinião que uma conspiração puramente intelectual brevemente ameaçará a própria existência da civilização. Está certo de que os mundos artísticos e científicos se uniram silenciosamente numa cruzada contra a família e contra o Estado. Em vista disto, formou um corpo especial de polícias, que são simultaneamente filósofos, e é seu dever observar o início desta conspiração, não só no sentido criminal, como também no terreno da Leia mais deste post
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