O fim da Cristandade (II): A crise do espírito
7 junho, 2010 1 Comentário
Andrea Mantegna, São Jerônimo Penitente no Deserto (1448-1451), Museu de Arte de São Paulo – MASP
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A causa imediata desta crise deve ser procurada na história da cultura e no próprio papel que a Igreja assumira em relação a ela. Pedagoga da inteligência, a Mater Ecclesia tinha, como já vimos, ensinado os seus filhos a refletir, a aprofundar os grandes problemas, a construir sistemas do mundo; mas acontecia-lhe o mesmo que acontece à maior parte dos pedagogos, que vêem seus discípulos, já adultos, voarem com as suas próprias asas, muitas vezes em direções opostas àquelas que lhes foram designadas.A razão, que a própria Igreja ensinara a usar, tendia a rebelar-se contra os princípios a serviço dos quais fora posta inicialmente. O direito, que a Igreja tanto ajudara a reconstituir, opor-lhe-ia teses em que ela já não teria nenhum papel a desempenhar. Observava-se, portanto, em todos os terrenos um movimento de rebelião – embora continuassem a respeitar-se as formas exteriores da obediência. E muitas forças novas da época cooperavam com esse movimento: as dos orgulhosos burgueses, cujas riquezas os impeliam a presumir de ateus vociferantes (esprits forts), e as das jovens monarquias, que não conseguiam satisfazer as suas ambições sob a incômoda tutela da Igreja.
O perigo poderia ter sido ultrapassado, como outros o tinham sido, se a Igreja, no dobrar dos anos 1300, tivesse contado no seu seio com cérebros bastante poderosos para arrostar as forças antagonistas, rebater os argumentos dos adversários e integrar o que neles podia existir de válido numa nova síntese cristã. Infelizmente, também neste domínio a seiva parecia escassa. A ausência de um São Tomás de Aquino fazia-se sentir cruelmente. A teologia, que fora a mestra de todas as disciplinas, estava num estado que um especialista qualifica “decadência geral” (Cayré, no seu conhecido manual de Patrologia). A filosofia e a teologia continuavam a ser cultivadas nas Universidades, mas as ciências especulativas cristãs já não possuíam nada que se assemelhasse à alta maestria da época precedente. As escolas defendiam sempre as suas posições – albertismo, tomismo, escotismo – e faziam finca-pé no seu dogmatismo, mas tratava-se cada vez mais de um mero dogmatismo, de argumentos cristalizados. No tomismo, a mais completa das doutrinas, além de Hervé de Nedellec, quem poderia ser considerado um mestre? Muitos defensores da verdade eram fanáticos do passado, tão convencidos de que os seus predecessores haviam dito tudo, que não ousavam acrescentar uma vírgula sequer ao seu corpo de doutrina, limitando-se a completá-lo em pontos secundários e a fazer valer a sua própria erudição e o seu virtuosismo dialético. A seiva desviara-se para o clã de todos aqueles que, embora professassem o cristianismo, tinham deixado de inspirar-se nos seus princípios e buscavam fora do quadro das verdades reveladas as respostas aos grandes problemas.
Fixavam-se novas posições, que seriam as posições dos “tempos modernos”. Até então, admitia-se que os esforços da inteligência deviam ser pautados por uma verdade transcendente e ordenados para um fim supremo, o conhecimento de Deus. As opiniões podiam diferir quanto aos métodos, e principalmente quanto ao lugar que a razão ocuparia, mas os princípios estavam firmemente estabelecidos e a teologia protegia com a sua muralha todas as disciplinas da cultura. Contudo, no interior desse belo edifício, certos espíritos tinham contribuído – muitas vezes sem o perceberem – para abalar as suas bases. Um Duns Escoto, insistindo nos dados intuitivos e místicos do conhecimento em detrimento da razão, um Roger Bacon, aprofundando o papel da crítica na pesquisa como ninguém o fizera até então, tinham acabado por comprometer o equilíbrio entre a razão e a fé, tal como São Tomás o estabelecera. Durand de Saint-Pourçain, bispo de Puy e depois de Meaux, era quase um racionalista. A vida do pensamento voltava a ser posta em discussão, de um modo mais radical do que nunca. A inteligência pode apreender o real? Qual o valor dos raciocínios? A fé é realmente o alfa e o ômega de todo o esforço intelectual? Não há contradições entre as verdades reveladas e as que a ciência nos permite atingir? Tais eram as questões que agitavam muitos espíritos neste fim do século XIII, criando um certo mal-estar. Mas, bem longe de se agarrarem a uma crítica negativa, os espíritos mais eminentes procuravam sair dela para fundar uma doutrina geral do conhecimento.
De todos estes defensores da “via moderna”, como se começava a dizer, o mais notável foi Guilherme de Ockham (1298?-1349). Franciscano inglês, aluno de Oxford e depois professor assistente, era um espírito dotado de uma singular acuidade, devorado pela paixão de compreender, uma inteligência ao mesmo tempo analítica e sintética que beirava a genialidade. Mas faltava-lhe o sentido da disciplina e da constância. O seu esforço consistia em pôr em discussão todas as coisas. Mais ou menos ligado aos “espirituais” e envolvido na luta contra a Santa Sé ao lado de Luís da Baviera, este profundo pensador desempenharia um papel desagregador em todos os domínios em que interveio. As suas idéias, embora tornasse geralmente a precaução de dissimular o seu pensamento no gênero ambíguo do Diálogo, foram censuradas pelo papado, o que, aliás, não impediu Ockham de continuar a difundi-las. Em que consistiam essas idéias?
Formara-as segundo os princípios de Duns Escoto, mas em breve os repudiara em parte, exagerando os pontos que considerava válidos. Outros mestres de Oxford, apaixonados pelas ciências físicas e matemáticas, também exerceram sobre le uma notável influência. Não há nada, pensava ele, que possa servir de base ao conhecimento, a não ser o que é evidente aos sentidos ou deriva necessariamente das suas comprovações. Portanto, o concreto, o singular, o individual devem ocupar um lugar preponderante; as idéias gerais, os gêneros, os universais são apenas palavras e sinais. Este empirismo arruinava toda a metafísica tradicional, privando-a do seu objeto próprio: o universal. Segundo Ockham, a espiritualidade da alma era tão indemonstrável como a existência de Deus. A moral dependia unicamente da vontade do homem, que não devia deixar-se influenciar por conceitos sem base no real. É o caso de perguntar o que ainda restava do cristianismo! No entanto – seria para ele apenas um verniz? -, Ockham considerava-se um verdadeiro cristão; todas essas verdades que, no seu sistema, eram inacessíveis, declarava ele alcançá-las pela fé; uma teologia sobrenatural, sem relação com as atividades da inteligência, explicava tudo pela vontade de Deus. De um lado, portanto, empirismo absoluto, próximo daquilo que hoje se pode entender por existencialismo; do outro, fideísmo. Onde estavam as belas sínteses de antanho?
A influência do ockhamismo foi considerável. Dir-se-ia que a inteligência cristã experimentava como que um gosto amargo em rejeitar tudo aquilo de que então tinha vivido. Oxford, naturalmente, foi ockhamista. Mesmo em Paris, o reitor João Buridan (+ 1358) implantou essa doutrina na Sorbonne. As Ordens religiosas deixaram-se influenciar e as repetidas condenações mostraram-se pouco eficazes. As teses de Ockham, e especialmente as aplicações que fazia dos seus princípios aos sacramentos e à Igreja, seriam assumidas por correntes ainda mais nitidamente heréticas, como a do seu compatriota Wiclef (1324-1384), anunciador da reforma protestante. João Hus acolhê-las-á e Lutero virá a proclamar-se ockhamista.
Por mais prejudicial que esta corrente de pensamento tenha podido ser para a fé, não há dúvida de que, quanto ao progresso do espírito humano, teve resultados que estiveram longe de ser totalmente maus. As ciências foram fecundadas por ela, e as suas disciplinas, submetidas até então às autoridades, sentiram-se livres. Bacon e Ockham ensinaram-nas a observar, a experimentar, a não fazer intervir pressupostos filosóficos nas suas pesquisas. Sob esta influência, esboçou-se, portanto, um grande movimento rumo às descobertas científicas experimentais. Buridan, perscrutando as teorias mecânicas de Aristóteles, fez a física moderna dar os seus primeiros passos e pressentiu a solução do problema da gravidade; vinte anos mais tarde, o bispo Albrecht von Halberstadt, e depois o bispo de Lisieux, Nicolau Oresme, empenharam-se a fundo nesse sentido, anunciando já a astronomia moderna e mesmo a geometria analítica. Simultaneamente, excitadas pelas narrativas de viajantes como Marco Polo, as ciências da natureza e a geografia entraram em plena atividade.
Estava-se, portanto, em plena crise do espírito, que, como todas as grandes crises humanas, comportava possibilidades criadoras e, ao mesmo tempo, grandes perigos. A arte também era testemunha disso. As obras-primas diminuíam em número. A inspiração profunda mudava. Insinuava-se nas veias dos artistas certa tendência para o artificial, para o afetado e, depois, para o preciosismo. A arquitetura dava o tom. Ao invés dos admiráveis conjuntos em que a própria complexidade do pormenor não prejudicava o sentido profundo da unidade e da simplicidade, tendia-se para o “flamejante”, para o virtuosismo pelo virtuosismo, quando não se caía no excesso. Os mestres-de-obras, possuidores de uma técnica impecável, queriam manifestá-la a propósito de tudo e de nada: daí esses edifícios secos, que tinham o aspecto de desenhos geométricos audaciosamente lançados no espaço, e daí também essa proliferação de curvas e contracurvas, de múltiplos elementos decorativos em volta dos pórticos e das janelas, das balaustradas e dos campanários. Era tudo maravilhoso e sofisticado, mas já não era a arte de uma grande época de fé.
As artes que tinham estado sob a tutela da arquitetura tendiam agora a separar-se dela. Igualmente senhores da sua técnica, os “imaginários” já não queriam ser simples colaboradores dos “pedreiros”. Os escultores em vez de trabalharem só para a catedral, punham-se a serviço da clientela particular, a das belas construções residenciais e dos túmulos faustosos. Os pintores, abandonando as paredes dos santuários, consagravam-se agora aos quadros de cavalete. A própria inspiração evoluiu: já não era o impulso místico ou a grandeza que triunfava, mas o gosto pelo real e pelo pitoresco.
A esta “laicização” da vida do pensamento é necessário ligar um fenômeno de capital importância: o renascimento do direito romano. Já vimos como a Igreja, nas suas Universidades ou servindo-se de uma forma ou de outra do trabalho dos seus mestres, colocara num lugar de honra os antigos estudos jurídicos, os Códigos, Novelas, Digesto e Institutas que os imperadores do Oriente tinham mandado compilar. Bolonha tornara-se a capital desses estudos. Mas esse renascimento comportava graves perigos, os mesmos que já encontramos em outros terrenos. Ao passo que o direito canônico se baseava nas leis divinas e na tradição da Igreja, o direito romano pretendia ser auto-suficiente e nada pedir à Escritura para estabelecer o seu Código. Acúrsio, o mestre bolonhês (†1260), assim o declarava sem rodeios. Subitamente, todos os elementos jurídicos da sociedade deixavam de ser irrigados pela seiva do Evangelho. Por exemplo, no matrimônio, à noção de sacramento, que implicava a união de duas vontades livres para a realização do seu fim, acrescentava-se – em certo sentido substituía-se – a noção puramente humana de contrato, que abrangia acordos materiais. E esta mesma laicização acarretaria conseqüências piores noutro campo: o das relações da Igreja e os poderes públicos. Quando os juristas resolveram substituir pelos seus princípios – os do Império romano – aqueles que a Cristandade considerava os únicos válidos, deram lugar a uma crise extremamente violenta, em que a Igreja teve de enfrentar novos poderes em pleno desenvolvimento.
Fonte: Daniel-Rops, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante, 1993, págs 622-626.
Imaginem em que situação se veriam estes que trabalharam consciente ou inconscientemente para a ruína da Cristandade, de ver a uma constituição da União Européia sendo assinada em Roma, falando de gregos e Carlos Magno, mas sem mencionar numa unica linha o cristianismo.
Em cima dos tolos, a estatua de um Papa medieval (não me recordo de cabeça) pairava, impotente, mas ao mesmo tempo imortal.