A necessidade da Graça I – Sem a graça pode o homem conhecer alguma verdade?

El_Greco_Pentecostes

 El Greco, Pentecostes

Parece que sem a graça o homem não pode conhecer verdade alguma:

1. Porque, sobre o texto da primeira Carta aos Coríntios: “Ninguém pode dizer Senhor Jesus, senão no Espírito Santo” (12, 3), diz a Glosa Ambrosiana: “Toda verdade, seja dita por quem for, vem do Espírito Santo”. Ora, o Espírito Santo habita em nós pela graça. Logo, sem a graça não podemos conhecer a verdade.

2. Além disso, Agostinho diz: “As mais certas doutrinas são como coisas que o sol ilumina para que possam ser vistas. Deus é que ilumina. A razão está para o  espírito como a vista para os olhos. E os olhos do espírito são os sentidos da alma”. Ora, os sentidos corporais, por mais puros que sejam, não podem ver um objeto se não estiverem iluminados pelo sol. Logo, a mente humana, seja qual for sua perfeição, não pode chegar por seu raciocínio à verdade sem a iluminação divina. Esta pertence ao auxílio da graça.

3. Ademais, a mente humana não pode entender a verdade a não ser raciocinando, como diz Agostinho. Ora, o Apóstolo diz: “Não somos capazes de pensar alguma coisa que , de fato, venha de nós” (2 Cor 3, 5). Logo, o homem não pode conhecer a verdade por si mesmo sem o auxílio da graça.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, Agostinho diz: “Não aprovo o que disse nesta oração: Ó Deus, quisestes que a verdade fosse conhecida somente pelos puros. Pode-se, entretanto, responder que muitos impuros conhecem muitas verdades”. Ora, é pela graça que o homem se torna puro, segundo o Salmo: “Um coração puro cria em mim, ó Deus; e um espírito reto renova em minhas entranhas” (50, 2). Logo, sem o auxílio da graça o homem não pode por si mesmo conhecer a verdade.

tomas_respondo Conhecer a verdade é o exercício ou o ato da luz intelectual, porque segundo o Apóstolo: “Tudo o que se torna manifesto é luz” (Ef 5, 13). O exercício implica em movimento: tomando movimento num sentido amplo, de tal modo que o entender e o querer podem ser ditos um movimento, como o Filósofo deixa claro. Vemos nos corpos que o movimento não exige apenas sua forma que é o princípio do movimento ou da ação; mas também requer-se a moção do primeiro movente. O primeiro movente na ordem dos corpos é o corpo celeste. Assim, mesmo que o fogo tivesse o calor perfeito, não queimaria sem a moção do corpo celeste. Fica claro, do mesmo modo, que os movimentos dos corpos dependem do movimento do corpo celeste, considerado como primeiro movente corporal. Assim todos os movimentos, corporais ou espirituais, dependem do primeiro movente absoluto que é Deus. É por isso que, seja qual for a perfeição de uma natureza corporal ou espiritual, não poderá chegar a produzir o seu ato se não for movido por Deus. Esta moção é conforme à razão de sua providência e não à necessidade da natureza, como é a moção do corpo celeste. Além disso, não é apenas a moção que vem de Deus, considerado como primeiro movente, mas também vem dele, como do ato primeiro, toda perfeição formal. Assim, a ação do intelecto e de qualquer ente criado depende de Deus, de duas maneiras: primeiro, enquanto d’Ele recebe a forma pela qual age; depois, enquanto é movido por Ele para agir.

Toda forma dada por Deus às criaturas possui eficácia em relação a algum ato determinado que lhe é próprio. Para que seu poder estenda-se para além, é preciso que uma nova forma lhe seja acrescentada. A água, por exemplo, não pode esquentar se não foi, ela mesma, submetida à ação do fogo. Do mesmo modo, o intelecto humano tem uma forma determinada, isto é, a luz inteligível, que por si só é suficiente para conhecer algumas coisas inteligíveis, aquelas que podemos adquirir a partir das percepções sensíveis. Mas, quando se trata de conhecimento de uma ordem superior, o intelecto humano não pode conhecer se não for reforçado por uma luz mais alta, a luz da fé, ou da profecia; é isto que se chama de luz da graça, porque é acrescentada* à natureza.

*Nota: “Acrescentada”: evitar entender essa imagem num contexto “entrinsecista”, como se a graça se sobrepusesse à natureza. Ela se acrescenta a esta última como um enriquecimento que a transforma a partir de dentro, o que, adiante, salientará a noção de “habitus” (“dom habitual”), utilizada para dizer o que é a graça em relação à natureza (q. 110, a. 2).

De tudo isso é preciso dizer que para o conhecimento de uma verdade, de qualquer ordem que seja, alguém precisa do auxílio divino para que o intelecto seja movido por Deus ao seu ato. Mas, uma nova iluminação acrescentada à luz natural do intelecto não é requerida para conhecer todas as espécies de verdades, mas somente para algumas verdades que ultrapassam a ordem do conhecimento natural. Entretanto, às vezes, Deus instrui milagrosamente por sua graça alguns a respeito de algumas verdades que são do domínio da razão natural, do mesmo modo que, algumas vezes, opera milagrosamente fenômenos que a natureza pode produzir.

Quanto às objeções iniciais, portanto, devemos dizer que:

1. Toda verdade, dita por quem quer que seja, vem do Espírito Santo enquanto infunde em nós a luz natural e nos dá a moção necessária para entender e exprimir esta verdade. Não, porém, enquanto habita pela graça santificante ou enquanto confere algum dom habitual acrescentado à natureza. Isso acontece somente para conhecer e exprimir certas verdades, sobretudo aquelas que se referem à fé. É a respeito destas que o Apóstolo falava.

2. O sol corporal ilumina de fora. Mas o sol inteligível, que é Deus, ilumina interiormente. Assim, a luz natural infusa na alma é uma iluminação de Deus pela qual nos ilumina no conhecimento de verdades da ordem natural. Para isso não se necessita de outra iluminação, mas somente para aquelas realidades que excedem o conhecimento natural.

3. Sempre necessitamos do auxílio divino para pensar qualquer coisa, enquanto é ele que move o intelecto para agir: compreender algo em ato é raciocinar, como diz Agostinho.

Suma Teológica I-II, q.109, a.1

Nota: Esse primeiro artigo traz duas distinções essenciais, que irão comandar toda a questão, e voltarão a aparecer ma sequência do tratado:

1° O auxílio divino, do qual o homem tem necessidade para agir, decompõe-se em: a) a moção, pela qual a criatura é posta em ação; b) a outorga da forma, segundo a qual ela é o que é e, sendo tal, é capaz de agir.

2° A segunda distinção incide diretamente sobre a forma: esta provém sempre de Deus, dado que tudo o que a criatura tem e é provêm de Deus. Deve-se distinguir a forma natural, pela qual a criatura é constituída em seu ser e em seus limites, e a “forma acrescentada” à natureza – ou seja, conforme especificamos, enriquecendo-a -, mediante a qual ela se torna capaz de transcender seus limitespor intermédio de uma ação que, por isso, será chamada de “sobrenatural”. É a graça propriamente dita, isto é, um dom que é dito gratuito como à segunda potência: gratuito em relação à criatura considerada em sua natureza constitutiva, ao passo que o seu ser mesmo já lhe foi concedido gratuitamente. O próprio ato de dar a fez ser, e é a ela, que só é por meio desse primeiro dom, que é outorgada a graça.

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