A morte de Tomás
4 outubro, 2011 Deixe um comentário
William-Adolphe Bouguereau, O Dia da Morte (1859)
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Em 29 de setembro de 1273, Tomás ainda participa do capítulo de sua província, em Roma, na qualidade de definidor. Mas, algumas semanas depois – segundo Bartolomeu de Cápua, que recebeu esse relato de João del Giudice, que o soube por Reinaldo -, quando celebrava a missa na capela de São Nicolau, Tomás sofreu impressionante transformação (fuit mira mutatione commotus): “Após essa missa, nunca mais escreveu ou ditou qualquer coisa, e até mesmo se livrou de seu material de escrever (organa scriptionis); encontrava-se na terceira parte da Suma, no tratado da penitência”. A um Reinaldo estupefato, que não compreende por que ele abandona sua obra, o Mestre responde simplesmente: “Não posso mais”. Voltando a questioná-lo um pouco depois, Reinaldo recebe a mesma resposta: “Não posso mais. Tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi”.
A partir dessa data – por volta de 6 de dezembro (a festo beati Nicolai circa) -, Tomás parece profundamente mudado. Ele, que conhecemos tão robusto e que ainda ontem se levantava para orar antes de todos, faz-se acamado, e é enviado para repousar junto à sua irmã, a condessa Teodora, no castelo de São Severino, a sudeste de Nápoles, um pouco acima de Salerno. Ali só chega à custa de muito esforço (properavit cum difficultate magna), e mal consegue saudar sua irmã, que se inquieta por vê-lo tão taciturno; é então que Reinaldo confia a Teodora jamais ter visto o Mestre fora de si por tanto tempo. É difícil avaliar a duração dessa estada, mas após algum tempo Tomás e seu socius retornam a Nápoles – sem dúvida no final de dezembro de 1273 ou início de janeiro de 1274.
Já em fins de janeiro ou no início de fevereiro, devem novamente se pôr a caminho para o concílio que Gregório X convocou para o 1° de maio de 1274, em Lião, tendo em vista um entendimento com os gregos. Tomás então leva consigo o Contra errores graecorum, que compusera a pedido de Urbano IV. Pouco depois de Teano, absorto em seus pensamentos, não percebe uma árvore tombada no meio do caminho e bate a cabeça num galho. Encontra-se estonteado pelo choque (fere stupefactus), correm para ajuda-lo, mas ele afirma que está apenas levemente ferido. Continua a caminhar conversando com Reginaldo, que procura distraí-lo falando-lhe do cardinalato que certamente receberá no concílio, assim como o irmão Boaventura. Tomás aprecia tal perspectiva de forma apenas moderada e impõe silêncio a seu companheiro.
A reputação do viajante caminha mais depressa que ele, e é provavelmente em São Germano (atual Cassino) que o aguarda um enviado de Bernardo Ayglier, abade de Monte Cassino, que o convida a fazer um pequeno desvio passando pela abadia, para esclarecer seus religiosos sobre o sentido de uma passagem de São Gregório. A subida é longa e rude (o desnível é de 480 metros, a estrada atual estende-se por nove quilômetros de subida); Tomás declina a oferta de passar pelo mosteiro – talvez já se sinta por demais fatigado -, alegando que uma resposta por escrito teria a vantagem de ser útil a leitores futuros e não só a ouvintes do presente (realmente, sua resposta será recopiada à margem da passagem litigiosa).
Os monges estão pois perturbados com a interpretação desse texto, que diz respeito às relações entre a infalibilidade da presciência divina e a liberdade humana. Tomás reafirma ambos os dados, mas ressalva que a diferença de plano entre os dois termos não implica nenhuma necessidade de um sobre o outro: ver alguém sentar-se não é obriga-lo a se sentar. Desse modo, Deus não pode se enganar em sua ciência que vê todas as coisas no presente de sua eternidade, e o homem é livre em sua atividade de criatura temporalmente situada. Notemos, de passagem, que esse pequeno escrito ditado a Reginaldo talvez seja a explicação mais clara dada pelo autor acerca do problema; isso demonstra que, se o corpo está afetado, as faculdades intelectuais do Mestre estão intactas.
Após alguns dias de viagem, na segunda quinzena de fevereiro (já era época da Quaresma, que naquele ano começara em 14 de fevereiro), chegam ao castelo de Maenza, um pouco ao norte de Terracina, onde habita Francesca, a já referida sobrinha de Tomás. Ali, ele adoece e perde totalmente o apetite; o médico chamado para ocupar-se dele – João de Guido, de Piperno – pergunta o que ele gostaria de comer e recebe uma resposta desconcertante: arenques frescos, que ele apreciara quando se encontrava em Île de France. Milagrosamente, os peixes são encontrados, mas, segundo Tocco, foram os demais os que comeram, pois o doente já não os desejava; uma testemunha ocular assegura, contudo, que ele os comeu: de quibus etiam arengis comedit dictus frater Thomas.
Tocco diz ainda que, sentindo-se um pouco melhor depois de alguns dias, tentou retomar a viagem para Roma, mas teve de se deter na abadia de Fossanova a fim de recuperar as forças. Segundo outra testemunha ocular, Nicolau, futuro abade de Fossanova, ele fez-se transportar da casa de sua sobrinha para a abadia: “Se o Senhor tiver de me visitar, é melhor que me encontre em uma casa de religiosos, e não em uma casa de seculares”. Outra testemunha ocular, Pedro de Montesangiovanni, talvez narre com mais exatidão o acontecido. Em companhia do prior de Fossanova e de dois outros frades do mosteiro, foi a Maenza visitar Tomás, que já conhecia de longa data; após passarem quatro dias no castelo, os monges voltaram a partir, levando consigo o enfermo e seus companheiros – Tomás viajou montado (equitavit), sinal de fraqueza e de gravidade de seu estado, já que aos dominicanos era proibido viajar a cavalo.
Tomás sobreviveu por algum tempo nesse lugar (iacuit infirmus quase per mensem), confuso e grato pelo trabalho que os monges tinham por ele, carregando nas costas a lenha para aquecê-lo. Segundo Tocco, teria então manifestado a intenção de comentar o Cântico dos Cânticos para agradecer-lhes, mas o abade Nicolau, que se encontrava presente, nada diz a respeito, nem tampouco qualquer dos dois cistercienses ainda vivos no momento do processo de Nápoles. Se não é inverossímil que Tomás tenha dirigido algumas palavras de edificação aos religiosos que vinham vê-lo, seu estado de saúde não permite considerar plausível que na ocasião tenha escrito um comentário completo do Cântico. Se algum texto a respeito já existiu (Bartolomeu e vários catálogos o referem, mas não as listas de Praga), não chegou até nós.
Após ter se confessado a Reginaldo, Tomás recebeu o viático em 4 ou 5 de março; como era costume, pronunciou uma profissão de fé eucarística. Segundo o testemunho ocular, de Pedro de Montesangiovanni, disse então diante do convento reunido muitas belas palavras a respeito do Corpo de Cristo, e dentre elas as seguintes: “Muito escrevi e ensinei a respeito desse Corpo santíssimo e da santa Igreja romana, a cuja correção tudo exponho e submeto”. João de Adelasia, outro monge de Fossanova, mas não testemunha ocular, transmite uma fórmula mais breve, porém exatamente do mesmo sentido.
Conhecemos ainda a fórmula ampliada de Bartolomeu, que se conclui do mesmo modo pela submissão ao julgamento da Igreja. É de Bartolomeu, sem dúvida, que Tocco a recebe e retoma integralmente, e é nesse ponto que ele insere o Adoro Te de sua quarta redação. Essa merece ser reproduzida, pois restabelece algo do juízo que o moribundo faz de sua própria obra:
Recebo-te, preço da redenção de minh’alma, recebo-te, viático de minha peregrinação, por cujo amor estudei, realizei vigílias, sofri; preguei-te, ensinei; jamais disse algo contra ti, e se o fiz foi por ignorância e não insisto em meu erro; se te ensinei mal a respeito desse sacramento ou de outros, submeto-o ao julgamento da santa Igreja romana, em obediência à qual deixo agora esta vida.
Nada impede de remeter a essa declaração para ter uma apreciação mais positiva – e portanto mais exata – da expressão: “Tudo isso me parece palha”. “Palha” é o termo consagrado a distinguir, conferindo os respectivos pesos, a essência da realidade do envoltório das palavras; as palavras não são a realidade, mas a designam e conduzem a ela. Como alcançara a realidade, Tomás tinha algum direito a se sentir distante das palavras, o que não significa, de modo algum, que considerasse sua obra destituída de valor. Ele simplesmente atingia o outro lado.
Tomás recebeu a extrema-unção no dia seguinte, respondendo ele próprio às palavras rituais. Morreu três dias depois, após ter recebido o Corpo do Senhor, ou seja, na quarta-feira, 7 de março, nas primeiras horas da manhã.
Jean-Pierre Torrel, OP, Iniciação a Santo Tomás de Aquino
Suma Teológica, História, No tempo de Tomás, Filosofia, Teologia
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