Louis Lavelle – A Presença Total (“ser criado criador”)
19 abril, 2013 4 Comentários
O Sacrifício de Isaac,
Caravaggio (Michelangelo Merisi da Caravaggio) (Itália, 1571–1610)
Leia também: A presença total (Introdução)
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Perguntar-se-á ainda com que direito um tal acto pode ser posto, uma vez que a experiência nada mais nos dá, em nós, senão um mundo de estados, fora de nós, senão um mundo de objectos. Mas é dar aqui um sentido demasiadamente restrito ao termo “experiência”. A consciência é sempre consciência da consciência: capta o acto no seu próprio exercício, não de modo algum isolado, sem dúvida, mas sempre ligado a estados nascentes e a objectos em aparecimento. Está sempre situada no ponto mesmo onde se produz a participação, quer dizer no ponto onde, através de uma dupla iniciativa de consentimento e de recusa, unidos a Deus e no entanto separados dele, nos damos a nós mesmos o nosso ser próprio e o espectáculo do mundo.
Dir-se-á que é por uma extrapolação ilegítima que ultrapassamos a correspondência actual entre tal operação e tal dado, que nada nos autoriza a pôr um acto perfeito que funda em si todos os dados, e que esse acto primeiro não pode ser mais do que, relativamente à nossa consciência, um acto de fé? Mas estamos aqui para além de todas as oposições que se podem estabelecer entre a experiência, a razão e a fé, no seio mesmo de onde brotam. É nele que a consciência se constitui, descobrindo concomitantemente a indivisibilidade do acto que a faz ser e a exterioridade de todos os dados que não são subsistentes por si e supõem sempre uma relação com um acto limitado e tolhido; criando ela própria um traço de união entre essas duas infinitudes, a da fonte onde se alimenta e a do objecto para o qual tende; tornando possível e realizando a comunhão de todos os seres particulares na unidade do mesmo universo, e a solidariedade de todos os fenómenos na unidade do mesmo pensamento; redescobrindo a presença actual e inevitável da totalidade do ser em cada instante e em cada ponto. E aceita-se de bom grado que este acto universal, de que falamos, mereça ser denominado um acto de fé, sendo verdade que não pode jamais tornar-se um puro objecto de conhecimento, que ultrapassa sempre tudo o que nos é dado, que nunca é captado, salvo pela nossa vontade de consentir em cooperar com ele, de tal modo que, se bem que seja em si mesmo a condição de tudo o que pode ser posto, não pode ser posto em nós e por nós senão na proporção da nossa própria potência de afirmação, medindo sempre o impulso, o ardor ou o desfalecimento da nossa atenção, da nossa generosidade e do nosso amor.
Sabemos todas as reservas e todas as suspeitas que fará nascer o nosso esforço para levar de repente a consciência ao nível do Ser. Mas, sem a consciência, não seríamos mais do que um objecto, quer dizer existiríamos somente para um outro, e como uma aparência na sua própria consciência. De qualquer modo, não se deve também considerar a nossa consciência pessoal como a simples espectadora de um mundo relativamente ao qual permanecesse estranha. Apenas nos revela o nosso ser verdadeiro, e, ao mesmo tempo, o interior do ser total, ao qual é consubstancial e no qual nos obriga a penetrar e a empenhar o nosso destino. A atitude fenomenista é, ao mesmo tempo, uma recusa do ser e uma recusa de ser. Mas, graças à consciência, cada um de nós, identificando-se necessariamente com o acto interior que realiza, descobre, realizando-o, o mais profundo e o mais belo de todos os mistérios que é o “de ser criado criador”.
(Tradutor: Américo Pereira)
Indubitavelmente, a consciência nos faz perceber o lugar onde nunca deveríamos sair, ou seja, o nosso ser enquanto tal. Ser cônscio de mim e de outro, e outro ser cônscio de si e de mim revela a natureza mais profunda da consciência.
Incríveis intuições de Louis Lavelle!
Posso não escolher os temores que me oprimem na realidade atual, mas a cada tentativa de libertação imbuída por um sentimento de verdade que me move, engajado na luta pela pureza da consciência, descobrimos que a consciência é a base de toda a existência e que não há existência que se justifique se não houver amor.
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Quanto ao último parágrafo gostaria de assim tecer:
Entramos num sistema filosófico, começando por coisas palpáveis aos nossos sentidos.
Ou seja: Pegamos o bonde andando de uma maneira ou de outra.
E assim, o último parágrafo revela uma visão muito bem elaborada do sentimento do autor.
Parabéns.