Os grandes temas da Idade Média (I): Os universais

Julián Marías
Leia também: Os grandes temas da Idade Média (II): A criação

A questão dos universais ocupa toda a Idade Média; chegou-se a dizer que toda a história da Escolástica é a da disputa em torno dos universais; isso não é correto; mas o problema está presente em todos os outros problemas e se desenvolve em íntima conexão com a totalidade deles. Os universais são os gêneros e as espécies e se opõe aos indivíduos; a questão é saber que tipo de realidade corresponde a esses universais. Os objetos que se apresentam a nossos sentidos são indivíduos: este, aquele; em contrapartida, os conceitos com que pensamos esses mesmos objetos são universais: o homem, a árvore. As coisas que temos à vista são pensadas mediante suas espécies e seus gêneros; qual a relação desses universais com elas? Em outras palavras, em que medida nossos conhecimentos se referem à realidade? Coloca-se, portanto, o problema de saber se os universais são ou não coisas, e em que sentido. Da solução que se dê a essa questão depende a idéia que teremos do ser das coisas, por um lado, e do conhecimento, por outro; e, ao mesmo tempo, uma enorme quantidade de problemas metafísicos e teológicos importantíssimos estão vinculados a essa questão.

A Idade Média parte de uma posição extrema, o realismo, e termina na outra solução extrema e oposta, o nominalismo. O nominalismo é decerto antigo, quase tanto quanto o realismo, e a história de ambos apresenta várias complicações e distintos matizes; mas a linha geral do processo histórico é a que acabamos de indicar. O realismo, que está em pleno vigor até o século XII, afirma que os universais são res, coisas. A forma extrema do realismo considera que estão presentes em todos os indivíduos que neles se incluem e, portanto, não há uma diferença essencial entre eles, diferem apenas por seus acidentes; são anteriores às coisas individuais (ante rem). Em essência haveria apenas um homem, e a distinção entre os indivíduos seria puramente acidental. Isso corresponde à negação da existência individual e beira perigosamente o panteísmo. Por outro lado, a solução realista era de grande simplicidade, e além disso prestava-se à interpretação de vários dogmas, por exemplo o do pecado original; se em essência existe apenas um único homem, o pecado de Adão afeta, naturalmente, a essência humana, e portanto todos os homens posteriores. O realismo está representado por Santo Anselmo e, em forma extrema, por Guilherme de Champeaux (séculos XI-XII).

Mas logo surgem adversários da tese realista. A partir do século XI aparece o que se chamou nominalismo, principalmente com Roscelino de Compiègne. O que existe são os indivíduos; não existe nada na natureza que seja universal; este existe apenas na mente, como algo posterior às coisas (post rem), e sua expressão é a palavra; Roscelino chega a uma pura interpretação verbalista dos universais: nada mais são senão sopros da voz, flatus vocis. Mas essa teoria é também muito perigosa; se o realismo exagerado ameaçava levar ao panteísmo, o nominalismo, aplicado à Trindade, nos conduz ao triteísmo: se existem três pessoas, existem três deuses. A encarnação também se torna de difícil compreensão dentro das idéias de Roscelino. As duas primeiras soluções são, portanto, imperfeitas e não resolvem a questão. Um longo e paciente trabalho mental, desenvolvido por uma parcela não desprezível de judeus e árabes, leva a fórmulas mais maduras e sutis no século XIII, especialmente em Santo Tomás.

O século XIII traz para o problema dos universais soluções próprias: trata-se de um realismo moderado. Reconhece-se que a verdadeira substância é o indivíduo, como afirmava Aristóteles, a quem invocam Santo Alberto Magno e Santo Tomás. O indivíduo é a substância primeira, próte ousía. Mas não se trata tampouco de um nominalismo; o indivíduo é verdadeira realidade, mas é indivíduo de uma espécie e surge dela por individuação; portanto, para explicar a realidade individual, faz-se necessário um princípio de individuação, principium individuationis. Santo Tomás diz que os universais são formaliter produtos do espírito, mas fundamentaliter estão fundados no real extra-mental. Os universais, considerados formalmente, ou seja, enquanto tais, são produtos da mente; não existem aí sem mais nem menos, são algo que a mente faz, mas têm um fundamento in re, na realidade. O universal tem uma existência, mas não como uma coisa separada, e sim como um momento das coisas; não é res, como queriam os realistas extremados, mas tampouco é uma palavra, é in re.

Trata-se agora de encontrar um princípio de individuação. Ou seja, o que é que faz com que este seja este e não aquele outro? Santo Tomás diz que um indivíduo é apenas matéria signata quantitate. A matéria quantificada é, portanto, o princípio de individuação; uma certa quantidade de matéria é o que individualiza a forma universal que a informa. Mas não esqueçamos que há uma hierarquia dos entes que vai da matéria-prima ao ato puro (Deus). A matéria-prima não pode existir atualmente, porque é pura possibilidade, mas a matéria informada pode ser forma ou matéria, conforme a consideremos; por exemplo, a madeira é uma certa forma, mas matéria de uma mesa; há, portanto, uma série de formas hierárquicas num mesmo ente, e há formas essenciais e formas acidentais. Esse princípio de individuação coloca para Santo Tomás um grave problema: e os anjos? Os anjos não têm matéria; como é possível neles a individuação? De nenhum modo, segundo a solução tomista; Santo Tomás diz que os anjos não são indivíduos, mas espécies; a unidade angélica não é individual, mas específica, e cada espécie se esgota em cada anjo.

No período final da Idade Média, o problema dos universais sofre uma evolução profunda. Já em mãos de João Duns Escoto, o grande franciscano inglês, e sobretudo nas de Guilherme de Ockham, volta-se à formulação nominalista da questão. Duns Escoto faz muitas distinções: a distinctio realis, a distinctio formalis e a distinctio formalis a parte rei. A distinção real é a existente entre as várias coisas; por exemplo, entre um elefante e uma mesa; a distinção de razão é a que eu estabeleço ao considerar a coisa em seus diversos aspectos, e pode ser efetiva ou puramente nominal; é efetiva se distingo, por exemplo, um jarro como recipiente de água ou como objeto de adorno; a distinção nominal não corresponde à realidade da coisa, apenas à sua mera denominação. A distinctio formalis a parte rei é também formal, mas não a parte intellectus, e sim a parte rei; isto é, não se trata de coisas numericamente distintas, mas não é o pensamento quem coloca a distinção, e sim a própria coisa. Assim, para Duns Escoto, um homem tem várias formas: uma forma humana ou humanitas, mas, além desta, uma forma que o distingue dos demais homens; isso é uma distinção formal a parte rei, o que Duns Escoto denomina, com um termo próprio, haecceitas ou “hecceidade”. A haecceitas consiste em ser haec res, esta coisa. Em Pedro e em Paulo está toda a essência humana; mas em Pedro há uma formalitas a mais, que é a petreidade, e em Paulo, a paulidade. Esse é o princípio da individuação em Duns Escoto, que não é apenas material, como na metafísica tomista, mas também formal.

A posição de Duns Escoto abre caminho para o nominalismo. A partir de então, e em especial no século XIV, vão se multiplicar as distinções e vai-se afirmar cada vez mais a existência dos indivíduos. Já em Duns Escoto, sem excluir a forma específica, são formalitates. Ockham dá um passo a mais e nega totalmente a existência dos universais na natureza. São exclusivamente criações do espírito, da mente; são termos (daí o nome de terminismo dado também a essa linha). E os termos são simplesmente signos das coisas: substituem na mente a multiplicidade das coisas. Não são convenções, mas signos naturais. As coisas são conhecidas mediante seus conceitos, e esses são universais; para conhecer um indivíduo preciso do universal, da idéia: quando, com Ockham, os universais passam a ser entendidos como meros signos, o conhecimento passa a ser simbólico. Ockham é o artífice de uma grande renúncia: o homem vai renunciar a ter coisas e se resignará a ficar só com seus símbolos. Será isso que tornará possível o conhecimento simbólico matemático e a física moderna, que nasce nas escolas nominalistas, sobretudo de Paris. A física aristotélica e a medieval queriam conhecer o movimento, as causas mesmas; a física moderna se contenta com signos matemáticos de tudo isso; segundo Galileu, o livro da natureza está escrito com signos matemáticos; teremos uma física que mede variações de movimento, mas renuncia a saber o que o movimento é. Vemos como a dialética interna do problema dos universais, assim como a da criação, leva o homem do século XV a voltar os olhos para o mundo e fazer uma ciência da natureza. A terceira grande questão da filosofia medieval, o problema da razão, centrará definitivamente o homem nesse novo tema que é o mundo.

Fonte: Julián Marías, História da Filosofia, Martins Fontes, 1ª edição, págs 143-147

3 Responses to Os grandes temas da Idade Média (I): Os universais

  1. sumateologica says:

    Já enviei a senha. Para entrar em contato comigo é melhor usar a página “Contato” no blog.

  2. Wagner says:

    Tenho a mesma dúvida do irmão acima. Eu mandei um recado no Orkut e responderam para eu enviar o e-mail. Porém, quando fui responder o scrap deu mensagem de que a “opção de postar para este usuário está desativada temporariamente”. De qualquer forma, o meu e-mail é esse aí que enviei.

  3. Magna says:

    Viva Cristo Rei e Salve Maria Santíssima!

    Como posso baixar os livros para download? Aqui diz que é preciso uma senha.

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