Outro diabo, outro aprendiz…

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                   Duccio di Buoninsegna (1260-1318), O Massacre dos Inocentes

                                                                                      ♣

Meu caro Giracuca,

Admirável! Você não apenas levou seu paciente a deitar-se com aquela moça desprezível com quem ele está namorando, mas ele até a engravidou! E o melhor de tudo: agora eles estão prestes a realizar um aborto.

Se você puder empurrá-los desse despenhadeiro, marcará três pontos a seu favor: duas almas destruídas parcialmente e um corpo destruído totalmente. Que perfeita paródia da “Sagrada Família” aqueles três são! Ah, fazemos bem em orgulharmo-nos do nosso trabalho, Giracuca – você por obedecer meu sábio conselho e eu por dá-lo.

O Comando Inferior coordenará seus esforços com os de Esmagalmo, designado para a garota, já que você pode pressioná-la de modo mais eficaz por meio dele. Eis algumas dicas:

Faça seu paciente pensar que ele está sendo “compassivo” quando se preocupa com ela no que diz respeito às consequências “inimagináveis” de levar a gravidez até o fim, seja ficando com o bebê, seja encaminhando-o para adoção. Faça-os prestar atenção aos fardos incluídos nas alternativas ao aborto, mas nunca ao aborto em si. Isso deve sempre aparecer como uma rota de fuga.

Faça-o exagerar, primeiro na própria mente e depois na dela, o estigma social que ela teme por uma gravidez fora do matrimônio – como se todos os amigos dela fossem vitorianos! E certifique-se de que ela considere psicologicamente impossível dar o bebê para adoção – como se os instintos maternais dela fossem muito fortes para que ela deixe o filho viver com qualquer outra pessoa, mas não tão fortes que a impeçam de matá-lo!

Acrescente os temores e as tolices bastante reais de um “casamento feito às pressas”. Mas não deixe que ela pense nas consequências do aborto tanto para ela como para o bebê: a culpa e a amargura, a insensibilidade, a perda da inocência, do idealismo e do romance, as memórias obsessivas que aparecerão em cada aniversário da morte do bebê.

Naturalmente, jamais deixe que nenhum deles use uma linguagem tão simples e honesta como essa. Certifique-se de que eles se sintam tão confortáveis em chamar a criança de “feto” e tão horrorizados em chama-la de bebê, que o realismo e a honestidade morram em suas almas antes que o bebê seja morto no útero.

E não se esqueça de exagerar os riscos médicos da gravidez e de minimizar os do aborto, particularmente a esterilidade e a frigidez frequentes. Nossos agentes têm escondido bem fatos como esses, apesar dos livros que os documentam, pois nós nos certificamos de que esses livros sejam divulgados e lidos apenas pelos já convertidos.

Faça-o levá-la a um daqueles “centros de aconselhamento para a gravidez”, que propagandeiam a “escolha”, mas que são verdadeiros alimentadores das nossas clínicas de aborto. Certifique-se de que eles não topem com uma daquelas armadilhas alternativas ao aborto como a Birthright. Elas são mais perigosas para a nossa causa do que todos os argumentos do mundo.

Então, você deve manter os fatos escondidos. Lembre-se sempre do primeiro princípio: Ofusque as Luzes. Faça que eles não pensem na simples e honesta pergunta a respeito da verdade objetiva, a pergunta sobre o que o aborto é e sobre o que é a “coisa” envenenada, queimada ou fatiada pelo aborto. JAMAIS DEIXE QUE ELES A CHAMEM DE “BEBÊ”!

 Você e pergunta: como? Eles sabem com certeza que se trata de um bebê. Sim, mas faça-os pensar que chamar essa coisa de bebê determinaria a questão (como de fato o faria) e fecharia todos os caminhos de “fuga” (aborto) e assim obscureceria a mente deles. Você pode até dar um jeito para que eles pensem que deixar um bebê vivo é algo tacanho; e assassiná-lo, uma atitude liberal.

Se você não conseguir manter aquela palavra repugnante, “bebê”, fora de suas mentes, não os deixe pensar nele como o bebê deles, mas apenas dela. Incite medo e rivalidade entre eles o mais que você puder. Isso manterá as águas agitadas, de modo que eles não olharão para os dois fatos óbvios: (I) que é um bebê e (II) que é responsabilidade deles, é o bebê deles. Ela deve ver isso como ”problema” ou posse dela. Vamos nos certificar de que Esmagalmo mantenha o artifício a respeito do “direito dela controlar seu próprio corpo e sua própria vida”.

Agora é o momento de usar aqueles clichês que eles sempre escutaram, sobre “valores” serem “pessoais” (código para relativo, arbitrário). Você pode até fazê-los pensar na própria realidade objetiva como sendo subjetiva, na verdade como criação da mente humana. Há muitos filósofos e ainda mais sociólogos e psicólogos que já enfraqueceram os próprios cérebros dessa maneira. É possível que jamais tenham escutado os nomes de Kant, Comte e Dewey, mas as idéias desses gotejaram nas mentes deles desde o jardim de infância.

Depois que você os fizer desacreditar da verdade objetiva, qualquer coisa se tornará possível. Eles não percebem o quão poderosa é essa alavanca. Pensam na questão como algo muito abstrato e técnico para que faça diferença em suas vidas. Rá! Como se a luz numa sala de operações fosse muito abstrata para fazer diferença na operação!

Certifique-se de apelar à “compaixão” – mas não pelo bebê, naturalmente. Eles não podem ver o bebê. Você se surpreenderia com o quanto isso ajuda. Para eles, é difícil sentir verdadeira compaixão por alguém que não podem ver, ou que seja diferente deles (como um nascituro). Isso também os condiciona a julgar pela aparência e a olhar inconscientemente para os deficientes como sendo apenas meio humanos.

Mas certifique-se de que eles amem apenas filhotes de foca, de baleias e de percas. E deixe que eles chafurdem em orgias de amor inocente com pessoas que jamais conheceram e que não podem ajudar, vítimas da opressão a meio mundo de distância. Rir de sua estupidez não apenas nos dá prazer, mas também satisfaz aquele incômodo moral que o Inimigo colocou neles. A fantasia é muito inofensiva para nós, até fantasias idealistas e morais. Apenas os fatos concretos contam: caráter, escolha, ato..

Controle os seus pronomes, de modo que jamais chamem seu bebê de “ele” ou “ela”, mas apenas de “isso”. Veja, nós podemos manipulá-los por meio das palavras. As palavras deles supostamente deveriam refletir seus pensamentos, e seus pensamentos supostamente deveriam refletir a realidade, segundo a intenção do Inimigo; mas nós podemos fazê-los distorcer o próprio pensamento por meio da distorção das palavras, e distorcer a realidade por meio da distorção do pensamento. Trabalhamos de trás para frente.

A razão pela qual isso funciona é que eles precisam de locais de ancoragem na linguagem para os seus pensamento, senão esses pensamentos, sem âncoras verbais, simplesmente desaparecerão. E se eles não tiverem locais de ancoragem para certas realidades no pensamento, já não acreditarão mais nelas, e a própria realidade começará a distanciar-se deles. Em outras palavras, o próprio distanciamento que sentirão no Inferno pode começar na terra por meio da manipulação das palavras.

Certamente você se lembrará do sucesso espetacular que tivemos na Alemanha nazista com o uso desse princípio. Ora, se os nazistas já não tivessem cooptado a frase, nós poderíamos fazer os humanos chamarem o aborto de “a solução final”.

Agora, para responder à sua pergunta sobre aquele momento de dor causticante que você teve quando eles estavam “fazendo o bebê deles”. Você se pergunta como um pecado poderia nos provocar dor em vez de prazer absoluto. Bem, infelizmente, isso dá prazer a eles e, portanto, nos causa dor. O Inferno ainda não foi capaz de inventar nenhum pecado que não dê prazer algum a eles (com a provável exceção da inveja). Devemos nos virar com o que temos, e isso significa usar as próprias invenções do Inimigo, embora nós a voltemos contra Ele. O prazer é invenção Dele, e Ele o colou ao ato sexual tão firmemente, que só podemos romper essa cola em casos extremos.

Mas há compensações mais do que adequadas. Agradeça pelo ato ter sido precedido por pecados deliciosos tais como a desobediência, a obstinação e pela recusa até em tentar o autocontrole; e ter se seguido de culpa, desapontamento e confusão em ondas tão grandes que poderíamos surfar nelas. Essas duas festas de prazer para você seguramente valeram o único momento de dor espremido entre elas, assim como aquele breve êxtase não foi nada para eles, se comparado à imensa dor e ao dano causado às suas almas – antes e depois.

Apenas pense, Giracuca, na horrível situação dos tentadores designados para pessoas casadas fiéis, que, repetidas vezes, atingem seus desprezíveis êxtases animais dentro da estrutura segura da lei do Inimigo, como uma grande pintura envolta por uma grande moldura. Aqueles pobres demônios não sentem absolutamente o deleite macabro que você sentiu quando aqueles dois animaizinhos fugiram do Inimigo antes (por rebelião) e depois (por vergonha) do ato. Aqueles pobres demônios não sentem nada além de dor por causa do amor completo daqueles animais, especialmente quando não se detêm em nada e nem mesmo usam contraceptivos. Como o inimigo é vulgar e de mau gosto: criar almas imortais de um modo tão cruamente animal e em meio a tanto prazer! Como nos comprazemos quando podemos perverter esse plano Dele, o qual nós tanto odiamos. Amor – como todas as formas dele ficam presas em nossas gargantas e nos deixam engasgados!

Você fez bem em não ter se contentado com os seus triunfos depois de tê-los feito fornicar, e imediatamente impôs sua vantagem apresentando a eles a tentação do aborto. Certifique-se de que eles coloquem os dois atos na mesma categoria e não reconheçam que o segundo destrói a vida enquanto o primeiro a gera. A linha de pensamento deles deve ser: “se fizemos a primeira coisa, podemos fazer a segunda”.

Assim como uma mentira conduz a outra, para encobri-la, também um pecado conduz a outro. Agora você os colocou numa sinuca de bico. Redobre seus esforços. Nunca descanse! O Inferno não dá férias e não tolera falhas. Se você puder prever e antecipar qualquer arrependimento que desfaria o nó Górdio que você está dando, será capaz de enrolar seus fios nas almas deles, interminavelmente.

O Inferno capturou muitas almas por meio da sinuca de bico. Cada trago pede mais um, que cria um hábito, que cria um vício, que leva a uma vida arruinada, ao desespero e a nós. Experimentar maconha leva a provar coisas mais pesadas, e leva ao crime, ao suicídio ou a uma overdose, e do escorregador eles caem numa piscina de fogo. A luxúria leva à fornicação; esta, ao aborto; um bebê morto, a uma consciência exterminada e à amargura ou ao desespero.

Infelizmente, o Inimigo fornece muitas saídas do nosso escorregador, muitas oportunidades de arrependimento. Não podemos fechar essas saídas. Não podemos esperar pegar todos os que estão no escorregador. Mas nós podemos esperar pegar alguns. Nem todos os que começam com pequenos pecados terminam no Inferno, mas todos os que terminam no Inferno começam com pecados pequenos.

Nós tivemos êxito com a tentação social, bem como com a tentação individual, através do princípio da sinuca de bico. Uma sociedade que pratica e justifica o aborto já está bem avançada no declive. O próximo passo é a eutanásia e o infanticídio, naturalmente. Em breve – mais rápido do que eles pensam – “Admirável Mundo Novo”. Eles já tem bebês de proveta e mães de aluguel, tudo em nome da “compaixão”.

Como é maravilhoso escutá-los justificando o aborto em nome da “compaixão”. Eles descobrirão quanta compaixão tem o deus do aborto quando Moloch retornar! Como nós gritamos de alegria quando Cartago convidou-o para jantar carne macia e corações quentes de bebês! Nós até fizemos muitos que pertenciam ao Povo Escolhido do Inimigo adorarem Moloch, numa orgia de ecumenismo. Muitos dos sucessores de Israel, na Igreja do Inimigo, estão seguindo o mesmo caminho. Felizmente para nós “aqueles que não aprendem com o passado estão condenados a repeti-lo”.

Depois que Moloch for solto, a sociedade deles estará condenada. Pois o aborto, que é a adoração a ele, não é apenas um pecado isolado, mas um ataque à própria vida. Nossa estrada mortal nessa sociedade já é uma super auto-estrada. Nós transformamos o lugar mais seguro do mundo , o ventre materno, no mais perigoso. Nós transformamos esse lugar natural de amor, de boa acolhida e de nutrição em um lugar de ressentimento, violência e de guerra contra as crianças.

O coração do triunfo de Moloch é o seguinte: aqueles que abortam inevitavelmente acreditam em uma das duas seguintes premissas, sendo que qualquer uma delas, quando aplicada consistentemente, é uma estrada direta para o Inferno: (I) A verdade objetiva não tem importância (pois a verdade objetiva é, naturalmente, que o aborto é o assassinato de um filho por sua mãe) ou (II) que eu sou meu próprio mestre e mestre dos outros, e se desejo matar, matarei. “Seja feita a minha vontade” e “Melhor reinar no Inferno do que servir no Paraíso”: os dois ditados mais profundos já inventados, você sabe por Quem!

Seu carinhoso tio,

Serpefídio

Peter Kreeft, Cartas de um outro diabo a seu aprendiz

2 Responses to Outro diabo, outro aprendiz…

  1. Pazigrafio says:

    Excelente artigo. No estilo e inspirado em C. S. Lewis. Parabéns e muito obrigado por ajudar-nos a focar naquilo que realmente interessa.

  2. Ajuda-me a pesar ainda mais a realidade maléfica do aborto. Não é possível pecar “ofendendo” apenas a Deus, ou a si mesmo, ou aos outros… Mais não digo.

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