O homem em discussão

Leonardo da Vinci, Homem Vitruviano (aprox. 1490),Gallerie dell’Accademia, Veneza

A consideração do homem na Suma Teológica não se reduz a algumas questões nas quais ele falou da lama humana e de sua criação à imagem de Deus no fim da primeira parte. De fato, esse estudo prossegue em toda a segunda parte, em que se encontram as indispensáveis considerações sobre os atos humanos, a liberdade, a consciência, as paixões, as virtudes, a vida social e as leis que a regem etc., sem omitir o fim da vida humana e os meios de graça que lhe permitem alcançá-lo. Não se poderia esquecer isso sem falsear totalmente a perspectiva do autor. O que se encontra na primeira parte é simplesmente o início dessa consideração em que Tomás começa situando o homem no vasto conjunto do universo. Segundo nossa própria linguagem, após ter falado de Deus em si mesmo, ele trata de Deus em sua relação com a criação. Uma vez que ele quer explorar o que significa o fato de que Deus seja princípio e fim de todas as coisas, deve falar da maneira pela qual as criaturas procedem de Deus: antes, a criação em si mesma, como ato de Deus, depois as diversas criaturas que compõem o universo criado. Distinguem-se sucessivamente três grandes categorias de seres saídos das mãos de Deus: os anjos, criaturas puramente espirituais; o mundo, criatura puramente corporal; e finalmente o homem, criatura ao mesmo tempo espiritual e corporal.

O simples enunciado dessa repartição da matéria nada diz ainda de seu conteúdo, mas permite ao menos entender a situação exata do homem nesse universo. Nem totalmente espiritual, nem totalmente corporal, ele é ao mesmo tempo um e outro, participando por sua alma do espírito e de sua imaterialidade, e por seu corpo da matéria e da corruptibilidade. Tomás convida o leitor a se maravilhar com essa criatura singular que lhe aparece como no ponto de junção entre dois mundos ao mesmo tempo em que resume em si a totalidade do universo:

Isso nos abre uma admirável perspectiva sob o encadeamento das coisas. Sempre, com efeito, o que há de mais humilde num determinado gênero toca aquilo que há de mais elevado no gênero imediatamente inferior. Assim, certos organismos animais rudimentares ultrapassam de pouco a vida das plantas: tais as ostras, imóveis, providas somente do tato, fixadas na terra como vegetais. Também Dionísio pode escrever: “A divina Sabedoria une os fins das realidades superiores aos princípios das realidades inferiores”. Entre os organismos animais, existe um, o corpo humano, dotado de uma complexidade perfeitamente equilibrada, que toca o que há de mais humilde no gênero superior, a saber, a alma humana, que ocupa o último degrau no gênero das substâncias intelectuais, como testemunha seu modo de intelecção. Vê-se por isso que a alma pensante pode ser considerada como uma espécie de horizonte e de linha fronteira (horizon et confinium) entre o universo corporal e o universo incorporal; substância incorporal, ela é, no entanto, forma de um corpo. E o composto formado pela alma intelectual e pelo corpo que ela anima é pelo menos também um, até mesmo mais, que o composto do fogo e sua matéria: mais a forma triunfa da matéria, mais forte é a unidade do composto.

Suma contra os gentios II 68, n. 1453

Esse texto é notável por mais de uma razão. Permite inicialmente dar-se conta de a que ponto seu autor se apresenta como o herdeiro da sabedoria dos antigos, porque ele combina aí na harmonia da síntese não somente temas, mas também inspirações filosóficas diferentes. De uma parte, encontramos, pelo menos sob a forma de uma sugestão acentuada, a antiga doutrina do homem microcosmo, realizando em si mesmo o universo “em miniatura”. Essa fórmula não volta menos de dezessete vezes à sua pena, e isso nos levaria muito longe para explorar esse belo tema. De outra parte, encontramos ainda e sobretudo nesse texto o que se pôde denominar “o axioma de continuidade” tão operante em sua obra, em que conflui a inspiração platônica de uma metafísica do um e a contribuição aristotélica de uma filosofia do ser. Essa corrige por seu empirismo o risco da pseudo-universalidade daquela.

No pensamento de Tomás, essa continuidade não é somente a de uma contigüidade puramente material, mas se multiplica numa participação da realidade inferior na perfeição da realidade superior. Em seu nível mais elevado, o inferior atinge o superior participando da dignidade deste por uma semelhança imperfeita. Esse princípio se revela decisivo em antropologia para excluir todo dualismo da visão do homem, porque não há ruptura mas continuidade entre as atividades biológicas, sensoriais e espirituais da criatura humana, porque é a mesma alma que é o sujeito dessas atividades. É aí que aparece em plena luz a originalidade de Tomás em relação a seus contemporâneos.

Dada essa posição intermediária do homem entre o mundo dos corpos e o do espírito, entende-se que o problema posto a quem reflete sobre a realidade humana é precisamente compreender a natureza do elo que mantém juntamente os princípios dos seres díspares que são o espírito e a matéria. O texto que lemos acima supõe resolvido o problema, porque se apresenta como a conclusão de uma longa discussão levada em várias frentes com diversos interlocutores. Tomás afastou inicialmente a opinião de Platão e daqueles que a apóiam, segundo a qual o homem é realmente a alma intelectual. A alma se serve de um corpo, ao qual dá o movimento, mas não a vida, e do qual é apenas uma locatária provisória. A esta posição dualista, que tem a desvantagem de unir o corpo à alma apenas de maneira acidental, Tomás prefere a posição de Aristóteles, para quem a alma intelectual não é somente o motor do corpo, mas sua “forma”; ela lhe dá a vida por uma união muito íntima, de maneira que não faz com ele senão um só ser perfeitamente uno, mas ela não é de nenhuma maneira a totalidade do homem.

Nessa perspectiva, “o homem não é nem seu corpo nem sua alma”, mas o composto que resulta da união da lama e do corpo, e, “desde que se trata do corpo animado, não se deve mais falar de prioridade ou de posteridade, há simultaneidade absoluta, uma vez que também o corpo animado coincide com o espírito encarnado” (Suma contra os gentios II 89, n. 1752). A alma é, sem dúvida, a parte mais nobre, em razão de sua natureza espiritual criada por Deus, mas não é uma substância completa existindo por si. O indivíduo subsistente, a pessoa humana, é a realidade total formada pela união da alma e do corpo. Não é o olho que vê, mas o homem por seu olho; assim não é a alma que sente, compreende ou age, mas o homem por sua alma. Se o corpo tem necessidade da alma, esta tem necessidade do corpo, e ela não é pensável senão como “unível” ao corpo. Se sua natureza espiritual a conserva incorruptível e portanto imortal, de sorte que pode após a morte subsistir sozinha, no estado de alma separada, mesmo então “guarda em seu ser uma aptidão e uma inclinação naturais a estar unida ao corpo”. Tomás o declara com a maior clareza: “Não lhe convém nem a definição nem o nome de pessoa” (Suma Teológica I, q.29, a.1).

Em outros textos, explicando que a imortalidade da lama não bastaria para a bem-aventurança porque só a ressurreição do corpo trará a realização do desejo natural de salvação ancorado no coração do homem, ele emprega esta fórmula importante: A alma não é todo o homem; minha alma não é eu” (In 1 ad Corinthios 15, 19, lect. 2, n. 924).

Compreende-se sem dificuldade a importância dessa opção. Em face de toda concepção “espiritualizante” dos ser humano, que corre o risco de tomar o corpo como quantidade negligenciável, o sólido realismo de Tomás de Aquino o faz afirmar tranqüilamente que o homem é um sendo corporal e que sem o corpo não há mais homem. A alma não está unida ao corpo para espiritualizá-lo, mas porque tem necessidade do corpo, pois sem o corpo a alma não poderia se entregar à sua operação mais nobre, a intelecção (Suma Teológica 1, q.84, a.4).

Essa maneira de dar conta do modo da união da alma ao corpo se opõe igualmente a duas outras posições sucessivamente afastadas como insuficientes para esclarecer a complexa unidade do homem. Sustentando a primeira, encontram-se novamente diversos representantes de um platonismo enriquecido de numerosas variantes, mas também São Boaventura e os teólogos franciscanos que se recusam a admitir que a alma intelectual seja a única forma do corpo. Eles se encontram numa repugnância comum em atribuir à mesma alma as atividades espirituais mais altas e tudo o que temos de comum com os animais. Segundo eles, era necessário admitir três almas diferentes conforme os diversos níveis de vida que se encontram no homem: vegetativa, sensitiva, intelectual. Em oposição a eles, Tomás se emprega resolutamente em mostrar que é a mesma alma que exerce essas três funções de animação, porque cada grau superior de uma forma substancial inclui e realiza o grau inferior. Quem pode o mais pode o menos, diríamos familiarmente. A unidade do ser vivo de natureza intelectual que é o homem se encontra assim mais perfeitamente assegurada, como o sublinha o texto citado.

A essa controvérsia, interna ao mundo cristão, se acrescentava uma segunda, na qual aqueles que eram adversários na primeira se batiam, ao contrário, lado a lado, uma vez que se tratava de fazer frente ao arabismo invasor que tinha já ganhado numerosos espíritos entre os filósofos de então. Estes últimos sustentavam que não havia nenhuma necessidade de que cada indivíduo humano exercesse por si mesmo a nobre função da intelecção, uma vez que um só princípio intelectivo, separado e comum a todos os homens, agia pelo conjunto da humanidade. Tese fascinante, pode-se dizer, mas paradoxal, e à qual Tomás responde com uma questão muito simples: como se poderia então dar conta desse fato concreto inegável: esse homem pensa (hic homo singularis intelligit)? “Se alguém pretende que a alma não é a forma do corpo, deveria encontrar o meio de explicar como a ação de pensar é o fato deste homem individual. Cada um sabe realmente por experiência que é ele que pensa”. Conhecido sob o nome de “monopsiquismo” (uma só alma), esse erro complexo e multiforme é atribuído a Averroes por Boaventura e Tomás, e por eles rudemente combatido contra alguns de seus contemporâneos.

Não é nosso propósito lembrar os detalhes dessas controvérsias, mas é importante salientar seu alcance, porque, sob sua aparência puramente intelectual, comportam repercussões práticas consideráveis. Com a reivindicação de um único intelecto separado, Tomás não teve nenhuma dificuldade em detectar a eliminação de toda liberdade e de toda responsabilidade individual, porque com a inteligência é o apetite intelectual, a vontade, que é posto em questão: “conclusão inadmissível, que levaria à ruína todo pensamento moral e toda a vida social”. Quanto à opção por uma pluralidade de almas no interior de um mesmo indivíduo, não somente não dá verdadeiramente conta da unidade do ser humano, mas também esconde um secreto desprezo do corpo e, em todo caso, compromete uma serena apreciação do valor da criação em seu aspecto material. Ora, sobre tudo isso Tomás tem um ponto de vista nitidamente mais positivo; se, como teólogo, ele se interessa inicialmente pela alma, não esquece que ela é a forma de um corpo. A pessoa humana sendo composta de alma e de corpo, não se poderia ter em vista a salvação de uma sem o outro. Sua doutrina das paixões é o ponto em que se manifesta mais diretamente a repercussão dessa antropologia na vida espiritual.

Fonte: Jean-Pierre Torrel, OP, Santo Tomás de Aquino, Mestre Espiritual, Loyola

 

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