Um cristão leigo: São Luís

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Viver sob o olhar de Deus: eis o ideal que a Igreja prescreveu à sociedade medieval através de tantas dificuldades e obstáculos. E houve homens e mulheres que, sem deixarem o mundo e sem entrarem nos quadros da clerezia, souberam praticá-lo com uma sublime perfeição. Se queremos penetrar nas lições de exemplo que nos dão estes santos leigos, basta-nos considerar o mais representativo, o príncipe que, de 1226 a 1270, ocupou – e com que soberana grandeza! – o trono da França: Luís, nono de nome, que, para a história, será sempre São Luís. Nele culminam e se realizam todas as virtudes que mil e duzentos anos de cristianismo fizeram germinar no homem. Ele domina e ilumina a sua época, a ponto de falsear um pouco a perspectiva e beneficiar com os seus méritos todo o século XIII, que, no entanto, foi menos cristão que o século XII. Aos olhos da posteridade, São Luís não se tornou somente o tipo ideal de homem que a Idade Média concebeu, mas também uma destas figuras insuperáveis que são, no decorrer dos tempos, os penhores da grandeza humana. É preciso falar dele com um sentimento de respeito e de verdadeira afeição.

Não é difícil descrevê-lo. Fisicamente, é um homem alto e magro, um pouco franzino, de rosto regular, cabelos louros e os olhos de um puro azul-claro. No menor dos seus traços, descobrem-se a força e a bondade com reflexos da sua alma. Moralmente, um santo, mas sem nada de santarrão, de beato, de hipócrita. Alegre, sabe gracejar, prefere os quolibets aos livros, e imprime à sua corte a atmosfera mais patriarcal possível. No entanto, sem aquela excessiva indulgência que é quase sempre fraqueza, e sem uma familiaridade a que sempre se mistura a grosseria, guardada as distâncias, não trata ninguém por “tu” e, quando é necessário, sabe mostrar-se de uma firmeza de aço. Raras vezes um homem viveu na terra com uma convicção tão firme de em breve pertencer ao céu, mas também raramente um mistério esteve tão próximo do real nem se embrenhou tão totalmente na ação.

Para ele, na base de tudo estava a fé, uma fé admirável, refletida e sólida. “Querido filho, a primeira coisa que te ensino”, diz ele ao seu filho mais velho, Filipe, na carta testamentária que lhe deixou, “é que o teu coração deve empregar-se em amar a Deus, porque, sem isso, ninguém pode salvar-se. Livra-te de fazer qualquer coisa que desagrade a Deus”. Em nenhum momento da sua vida desobedeceu a esse princípio, do qual dimanam todos os outros. Tal como foi educado, sob a sábia autoridade de Branca de Castela, essa mãe que lhe dizia com toda a espontaneidade que preferia vê-lo morto a vê-lo pecador, assim viveu toda a sua vida. No meio das suas pesadas tarefas, encontrava tempo para recitar diariamente as Horas litúrgicas; lia assiduamente a Sagrada Escritura e os Padres; confessava-se freqüentemente e exigia que, como penitência, o açoitassem com golpes de disciplinas. Jejuava, usava cilício e vivia numa frugalidade e numa modéstia extrema, pelo menos sempre que a sua posição não o obrigava a vestir os trajes de etiqueta. “Costumes não só de um rei, mas de um monge”, diz um biógrafo: costumes, pelo menos, de um terciário franciscano.

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Haveria excesso em tudo isso? Pensamos que não. Voltaire, num texto abjeto, sustentou que esse monge coroado realizou mal as suas tarefas, mas não parece ser verdade, em vista das condições em que deixou a França. “O trono resplandecia com o sol que espalha os seus raios”, diz Joinville, e essa frase não é de maneira nenhuma uma adulação. Neto de Filipe II (1180-1223), que mereceu o nome de Augusto pelo seu grande esforço por reunir terras e pela vitória da batalha de Bouvines, e filho de Luís VIII (1223-1226), cujo curto reinado bastou para revelar a sua coragem e dons, São Luís nunca permitiu que a sua fé entrasse em conflito com a sua missão de responsável pela França, e o seu grande milagre foi ter sempre sabido conciliar os interesses naturais e sobrenaturais.

Se notamos alguns excessos na sua fé, isso se justifica pela propensão que teve em toda a sua vida para se entregar à sua tarefa de proselitismo feito a tempo e a destempo, para pregar e moralizar. Podemos sentir-nos tentados a sorrir ao vermos esse pai dar como presente de Natal à sua filha mais querida… um cilício e umas disciplinas; mas isso era sinal de amor, maior do que qualquer outro, e Isabel assim o entendeu. Houve uma ocasião em que esteve tentado a ultrapassar as exigências da sua fé, traindo a tarefa a que Deus o havia chamado: falou de retirar-se e ir viver com esses homens de Deus cujas humildes refeições e fadigas tanto gostava de partilhar, fossem eles cistercienses ou franciscanos. Bastou, porém, que sua mulher, mostrando-se digna da sua missão de rainha, se lembrasse que ele não tinha por dever fugir do mundo, mas reinar segundo as leis de Deus, para que renunciasse ao seu sonho.

Porque a fé, para ele, não era uma espécie de couto fechado, isolado no segredo da alma e sem influência sobre o comportamento. Ela devia reger todos os seus atos. Era porque crer em Cristo e seguir o seu exemplo significa antes de mais nada amar os homens, essa fé traduzia-se numa generosidade maravilhosa. “Teve caridade com o próximo”, escreve  Guilherme de Saint-Pathus, “e uma compaixão ordenada e virtuosa (gostaríamos de sublinhar e comentar essas palavras profundas…). Cumpriu as obras de misericórdia albergando, alimentando, matando a sede, vestindo, visitando, confortando, ajudando pessoalmente e amparando os pobres e os doentes, remindo os mais humildes prisioneiros, enterrando os mortos e ajudando a todos virtuosa e abundantemente”.

Andava a pé pelas ruas das suas cidades, distribuindo pelos pobres dinheiro a mãos-cheias; na Maison-Dieu de Compiègne, cuidava dos doentes mais dignos de lástima, indiferente ao pus que as chagas dos cancerosos espirravam sobre ele; convidava para a sua mesa vinte pobres, tão sujos e fétidos que os guardas do palácio ficavam chocados; corria para junto de um leproso, mal ouvia ao longe o som da sua matraca, e beijava-o fraternalmente: todos esses episódios e centenas de outros não foram tirados da Lenda dourada, mas das crônicas mais dignas de crédito. Quanto às obras e instituições de caridade que promoveu, são inumeráveis: Hôtel-Dieu de Pontoise, Hôtel-Dieu de Versalhes, Quinze-Vingts para os cegos em Paris, albergues e orfanatos, sem falar de todos os conventos de beneditinos. “Iluminou o seu reino”, diz Joinville, “com a grande quantidade de Maison-Dies que fundou”, e depois acrescenta à maneira de conclusão: “Muitos padres e prelados desejariam se semelhantes ao rei nos seus costumes e virtudes”.

O mais admirável é que essas virtudes propriamente religiosas nunca representaram um obstáculo às qualidades do homem nem ao aperfeiçoamento da sua personalidade. E ele era consciente de que corria esse perigo. Joinville conta que, num dia em que estava de bom humor, convidou-os a ele e ao capelão Sorbon a dizer se era preferível ser prudhomme (gentil-homem) ou devoto e, depois de os ter escutado a rir, concluiu gravemente: “Quanto a mim, gostaria de ter esse nome de prudhomme e de o ser realmente; deixar-vos-ia todo o resto, porque o nome de prudhomme é uma coisa tão boa e tão grande que, só de pronunciá-lo, a boca fica cheia”. E o que entendia ele por isso? O que toda a Idade Média entendeu e o que se deve compreender quando se lê nas gestas que Rolando ou Perceval eram prudhommes. A prudhommie era a realização perfeita do homem na situação querida pela Providência, a submissão completa às exigências da moral, a orientação de todo o ser para o melhor e o mais alto. Sendo o que era por nascimento, São Luís, para ter prudhommie, não deveria ser apenas um homem interior, mas também cavaleiro sem medo e sem mancha, e rei consciente dos seus deveres, como realmente foi.

Cavaleiro durante toda a vida, soldado a quem a coragem parecia fácil, visto que se apoiava na certeza da vida eterna, soldado para quem combater o inimigo era motivo de alegria e fervor, e que sempre, na batalha, se colocava nos lugares mais perigosos, sem nunca ter recuado ou recorrido a qualquer astúcia – São Luís parece mais ter saído da Demanda do Santo Graal do que das páginas da história. Era tal a irradiação da sua personalidade que se impunha aos próprios inimigos: quando caiu prisioneiro dos muçulmanos, a maneira como o sultão o tratou foi tão honrosa para o mouro como reveladora do ascendente que o cristão exercia sobre ele. São inúmeros os relatos que testemunham o seu prestígio. Certo dia, um chefe do Islão chamado Faress-ed-Din, depois de ter assassinado cruelmente o seu senhor, veio procurar o rei prisioneiro e pediu-lhe, a título de recompensa, que o armasse cavaleiro. São Luís recusou, não sem ironia, pois perguntou ao bandido se estava disposto a abjurar o Alcorão. Surpreendentemente, o homem baixou a cabeça e retirou-se sem um gesto de vingança. Tal era a autoridade do santo.

Não possuía somente as qualidades militares do cavaleiro, pois nunca deixou de cultivar as virtudes da humanidade e da delicadeza que tornavam um cavaleiro não apenas um guerreiro de elite, mas também uma testemunha de Deus. A sua mansidão para com os humildes, o seu desejo de proteger os fracos, a sua generosidade para com os adversários, enfim, todos esses rasgos que ainda hoje caracterizam o termo “cavalheiresco”, foram nele tão naturais que nos esquecemos de pensar que, num homem como ele, de temperamento vivo e propenso à cólera, podiam ser meritórios. Ao mesmo tempo, havia nele em grau supremo aquela qualidade que o poeta atribui a Perceval e sobretudo a Galaad: era nice, isto é, simples, sem segundas intenções, puro de alma e de desejos, sem qualquer conivência com essas forças que arrastam o homem para baixo e para a lama.

Há um ponto em que essa niceté – essa ausência de duplicidade – resplandece sobremaneira: a sua vida conjugal. Ao contrário de tantos príncipes cujas loucuras matrimoniais e extra-matrimoniais enchiam de escândalos as crônicas, ao contrário de um Frederico II, seu contemporâneo, e mesmo de tantos outros Capetos, incluído o seu caríssimo avô, São Luís demonstrou que se podia ser rei e obedecer ao 6º e 9º mandamentos, sem no entanto ter nada de puritano ou de impotente, pois este homem de Deus teve nada menos que onze filhos. Para viver essa fidelidade conjugal, talvez tivesse tido que adquirir méritos que só o Senhor conhece. Tendo desposado no limiar da adolescência a princesa Margarida da Provença, provocante menina de catorze anos, Luís, depois de alguns anos de ardente paixão pela sua bela esposa, não tardou a julgá-la demasiado frívola, demasiado coquete, e muito pouco sintonizada com as suas profundas aspirações místicas, capaz de se mostrar uma verdadeira rainha, como foi durante o drama da Cruzada, mas também capaz de pequenas maquinações e semi-traições que não deixavam de inquietá-lo. No entanto, o rei santo conservou-se totalmente fiel a esse casamento que, no fundo, seria um longo e muitas vezes penoso mal-entendido. Aos olhos de Deus, aos olhos dos homens, não houve um só gesto da sua parte que desmentisse a divisa que mandara gravar no interior da sua aliança: “Neste anel, todo o meu amor”.

Por mais elevadas que possam ser as virtudes pessoais de um homem, não são verdadeiramente cristãs se não se manifestam e se exteriorizam de algum modo na conduta diária e no cumprimento dos deveres de estado. Durante toda a sua vida, São Luís seria a criança a quem a mãe inculcara esses princípios, o adolescente que ela acostumara, durante a regência, a acompanhar os trabalhos dos ministros, a escutar os juristas, e também a aparecer em toda a parte onde o seu povo sofresse qualquer miséria, epidemia, inundação ou má colheita. Mesmo no fim da vida, quando era notório que o sonho de se unir inteiramente a Cristo, de viver e morrer no seu amor, era a única coisa que o animava, cumpria a menor das suas tarefas de rei com uma seriedade e uma aplicação magníficas, porque o Senhor as tinha confiado à sua solicitude. O seu sentido de responsabilidade era tão grande que se considerava parte do seu povo e partícipe do seu destino. Uma frase admirável que pronunciou diante de Damieta, em 4 de julho de 1249, resume a sua atitude de rei cristão: “Meus amigos e fiéis, seremos invencíveis se formos inseparáveis na vossa caridade; eu não sou o rei da França, eu não sou a Santa Igreja; sois vós, enquanto unidos, que sois o rei, que sois a Santa Igreja”. Que chefe encontrou alguma vez palavras tão belas para definir a sua missão?

Praticamente, esses princípios comandaram uma atitude política que faria do seu reinado um dos mais felizes que a nação francesa já conheceu. Nos conselhos que deu ao seu filho Filipe, lê-se esta pequena frase: “Deves por todo o teu cuidado em fazer com que os teus familiares e os teus súditos vivam sob o teu domínio em paz e justiça…” Paz e justiça: São Luís nunca teve outro desígnio em vista. A justiça era antes de tudo combater todos os que perturbassem a ordem e infligissem sofrimentos aos mais fracos; por isso, as guerras privadas foram severamente proibidas e, se São Luís não conseguiu impedi-las totalmente, pelo menos no seu reinado foram uma exceção.

A justiça era ainda reconhecer e impor o respeito pela pessoa humana, mesmo que se tratasse dos mais humildes e mais deserdados. Foi por isso que, no grande movimento de libertação dos servos, ele ocupou um lugar de primeiro plano. As palavras que um dia Jacques de Vitry proferira do púlpito haviam calado fundo no seu espírito: “A verdadeira nobreza é a da alma; nós não nascemos, uns de pais de ouro ou de prata, outros de pais de barro; não viemos, uns da cabeça, outros do calcanhar; descendemos todos do mesmo homem e todos saímos das suas entranhas”. A partir de 1246, começou a tomar medidas para que os servos dos seus domínios fossem libertados e, sempre que pôde, encorajou os senhores a imitar o seu exemplo, ajudando monetariamente alguns que hesitavam diante dos prejuízos que este gesto lhes acarretaria. A classe trabalhadora não teve um amigo mais atento às suas necessidades e mais generoso para com as suas profissões do que esse rei que fez de Étienne Boileau – o grande organizador dos ofícios no tempo de Filipe Augusto – seu conselheiro, seu amigo e um dos seus mais altos magistrados.

Mas a paz e a justiça implicavam uma obrigação ainda mais flagrante: aquela mesma à qual, há vários séculos, os Capetos tinham tido o mérito de ser admiravelmente fiéis – a de serem “reis bons e justiceiros”. É célebre o pequeno quadro pintado por Joinville, em que São Luís aparece sentado no bosque de Vincennes, depois da missa, encostado a um carvalho e escutando, “sem o estorvo de qualquer vigia”, todo aquele que tivesse uma demanda a apresentar.

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S. Luis sob o carvalho de Vincennes atendendo o povo – Vitral da Igreja de la Selle-sur-le-Bied – Sec. XIX

A cena tem o valor de um símbolo: mesmo quando não administrava pessoalmente a justiça, esta foi sempre a sua constante preocupação. E, aliás, as suas intervenções neste domínio estavam longe de terminar sempre em indulgência. Alguns tiveram uma dura experiência, como aquele cozinheiro que, acusado de violências, esperava escapar da forca porque pertencia aos quadros da casa real, e o rei pessoalmente mandou enforcá-lo; ou como aquela nobre dama de Pontoise, acusada de ter mandado o amante matar o marido, pela qual intercederam franciscanos, dominicanos, altas damas da corte e a própria rainha, e que o rei ordenou que fosse queimada no próprio lugar do seu crime, “porque a justiça feita aos olhos de todos é boa”. Muitos casos, no seu tempo, ficaram célebres pela firmeza e independência com que o rei os julgou. O de Enguerrand de Coucy deixou estupefatos os contemporâneos: um barão ilustre, aparentado com toda a nobreza do reino, foi preso, condenado a pagar uma multa pesada e a expiar o seu crime fazendo sucessivas peregrinações simplesmente por ter mandado enforcar três rapazes que caçavam nas suas terras – uma decisão inconcebível para os costumes da época. Outro caso, embora menos citado hoje em dia, não causou menor escândalo na época: aquele em que o próprio irmão do rei, o conde de Anjou, tendo mandado prendeu um cavaleiro das suas terras por ter apelado para o rei contra uma sentença local, foi intimado a comparecer em Vincennes; fez-se acompanhar pelos seus melhores juristas, mas encontrou contra eles, como advogados do queixoso e por ordem do rei, os mais ilustres conselheiros jurídicos da coroa. Podemos imaginar qual foi a sentença.

A influência de São Luís no campo da justiça foi profunda e duradoura. Uma ordenação de 1260 proibiu o duelo judiciário e, “em lugar de batalhas, passaram a ser apresentadas provas e testemunhas”. Os casos em que se podia apelar para o rei foram precisados e aumentados, depois de submetidos ao parlamento. A escolha dos juízes foi vigiada de perto; exigiu-se deles o juramento de que não receberiam das partes litigantes nem ouro, nem prata, nem outros benefícios, e foram até proibidos de freqüentar as tabernas e de jogar dados! O prebostado de Paris, até então vendido aos seus beneficiários – um feudo da rica burguesia -, sofreu uma boa transformação e foi confiado a Étienne Boileau, do qual Joinville diz que “se comportou tão honestamente que nenhum ladrão, malfeitor ou assassino se atreveu a ficar em Paris sem ter sido imediatamente enforcado ou exterminado; nem pais, nem ouro, nem prata podiam salvá-lo”. E o cronista acrescenta que o povo foi o primeiro a reconhecer a justiça que ali se fazia.

São Luís seguiu o mesmo ideal de justiça no que se referia ao dinheiro. Pessoalmente, era muito reservado nas suas despesas particulares, e foi esse o conselho que deu ao filho no seu testamento. Se, no entanto, os impostos não sofreram nenhuma redução no seu reinado, a causa foram as guerras que teve de sustentar contra os senhores feudais revoltados e contra o rei da Inglaterra, e depois as duas Cruzadas que a França financiou quase sozinha. Mas também neste terreno São Luís se mostrou escrupuloso e consciencioso, recusando-se a recorrer aos expedientes dos homens de finanças, velando pela repartição eqüitativa das cargas tributárias e não querendo de forma alguma envolver-se em nada de parecido com as manipulações monetárias que dariam ao seu neto Filipe o Belo uma fama tão triste.

Desta maneira, conservando-se fiel aos seus deveres de cristão, São Luís cumpriu também plenamente os seus deveres de rei. Por isso, a França do seu tempo foi, aos olhos de toda a Cristandade, a “terra mais feliz e abençoada”, o país onde certamente a paz e a harmonia, de mãos dadas com uma constante preocupação de eficácia, criaram uma “conjuntura” – como a chamariam os nossos economistas – extremamente favorável. Durante todo o seu reinado, o país dá a impressão de uma imensa atividade criadora. É a ocasião em que Roberto de Sorbon, capelão do rei, cria o colégio que se tornará célebre até hoje – a Sorbonne. É a ocasião em que todo o reino da França – e sobretudo, em Paris, toda a colina de Santa Genoveva – se cobre de institutos, colégios e casas de estudantes. É a ocasião em que Chartres reconstrói a sua catedral, destruída pelo incêndio de 1194, e em que os canteiros de obras de Reims, Bourges, Amiens, Beauvais e Rouen trabalham incansavelmente. É finalmente a ocasião em que, como símbolo deste reino, e dirigindo-se como ele para o céu, se ergue, para abrigar a mais santa relíquia, a Coroa de espinhos, essa aérea audácia de pedra cinzelada e de misteriosos vitrais que se chama a Sainte-Chapelle.

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Os povos sabem distinguir entre os seus senhores aqueles que, no poder, procuram apenas os seus interesses e aqueles que só exercem a autoridade tendo em vista o bem comum. Não escapava a ninguém que Luís IX pertencia ao segundo tipo. Quando morreu, uma lamentação exprimiu em termos comoventes a dor da França: “A quem poderão os pobres recorrer, agora que morreu o bom rei que tanto os amava?” E muito antes que Bonifácio VIII promulgasse oficialmente, em nome da Igreja, a bula em que o canonizava, os pobres já lhe tinham concedido a canonização em seus corações.

Mas não foi só a França; a Cristandade inteira admirou São Luís e considerava-o um homem de Deus ainda em vida. É que ele soube ser fiel aos princípios que regiam a sua vida também num terreno em que é mais constante vê-los desprezados: o das relações com os outros Estados. Pensava – e disse-o muitas vezes – que não existem duas morais, uma válida para o homem individual e outra para o homem em grupo, e que axiomas como “amai-vos uns aos outros” não deixam de ser obrigatórios quando se passa para o plano da política internacional. Este é um dos aspectos da sua ação que têm sido mais mal julgados e mais desprezados; o fanatismo nacionalista dos tempos modernos falseou o julgamento sobre esta matéria, a tal ponto que pessoas muito honestas pretendem pôr em prática uma espécie de maquiavelismo provinciano e consideram quimérica e perigosa uma política cristã. Os resultados estão à vista.

Esta “política tirada da Sagrada Escritura” – para nos servirmos das palavras de Bossuet – prejudicou a coroa francesa? É muito discutível. Em qualquer caso, é evidente que nunca envolveu, por parte do mais santo dos Capetos, qualquer servilismo em face da Igreja, nem, por outro lado, qualquer tipo de descuido pelos interesses franceses. São inúmeros os exemplos em que vemos o rei manifestar uma absoluta independência política perante essa Mater Ecclesia da qual, no entanto, se declarava, como homem privado, o mais submisso dos filhos. Alguns bispos do reino vinham procurá-lo para que o braço secular os ajudasse a aplicar as penas de excomunhão? São Luís respondia-lhes que, na sua opinião, tais sentenças tinham com freqüência pouco fundamento; recusava-se a intervir e ainda conseguia que o Papa convidasse esses bispos a não proceder inconsideradamente. Por outro lado, quando altos prelados romanos, e até papas como Inocência IV, se deixam arrastar, em matéria de bens aclesiásticos, por uma falta de discrição que beirava a rapacidade, São Luís apoiou com toda a sua autoridade os protestos do clero nacional e redigiu pessoalmente o memorial enviado ao Latrão sobre o assunto.

Muito mais característica foi a sua atitude em face do grande e trágico debate entre o Sacerdócio e o Império: nem por um instante submeteu-se à política pontifícia. Desde 1240, Branca de Castela e ele vinham recusando ao irmão do rei, o conde de Artois, a coroa de Roma que Gregório IX lhe oferecia por ódio a Frederico II; mais tarde, trabalhou por reaproximar os adversários, e quando, em 1245, Inocência IV convocou para Lyon o Concílio ecumênico que viria a abater Frederico II, São Luís recusou-se a comparecer pessoalmente e lançou mão de todos os meios para implorar a clemência pontifícia. E se não pôde impedir que se lesse do alto do púlpito a sentença de excomunhão, pelo menos absteve-se de aprová-la com o menor comentário. Ao considerarmos os resultados desta dolorosa questão, temos o direito de pensar que, pregando a reconciliação e a união de todos para a Cruzada, o santo rei via talvez mais claro que o pontífice romano.

Houve um caso em que ele se submeteu de forma particularmente exemplar aos eminentes ditames da eqüidade cristã, já que agiu aparentemente contra os interesses da coroa. Nas suas relações com o rei Henrique III da Inglaterra, Filipe Augusto, em reparação pela injúria que lhe fizera o seu vassalo João Sem-Terra, confiscara a quase totalidade dos seus bens na França, incluído o domínio patrimonial dos Plantagenetas. Os ingleses não paravam de protestar contra esse confisco e estavam dispostos a recomeçar a guerra na primeira ocasião. São Luís perguntava-se muitas vezes a si mesmo se o seu antepassado teria agido de modo justo: “a consciência remordia-o”. Certamente, o rei da Inglaterra, cujos barões procuravam incessantemente envolvê-lo em disputas, não parecia muito de temer, mesmo apoiado pelo seu irmão o conde de Cornualha, convertido por vontade do Papa num “rei dos romanos” muito nomina. Se São Luís tivesse escutado apenas o interesse político, teria podido, com um simples golpe de espada, varrer para fora da França o que restava do inglês. Mas foi bem diferente a solução que adotou. Mandou dizer a Henrique III: “Se renunciardes absolutamente à Normandia, ao Anjou, à Touraine, ao Maine e ao Poitou, e aceitardes que essas províncias sejam definitivamente francesas, e se, por outro lado, me prestardes homenagem pela Guyenne, abandonar-vos-ei, a título de feudos pelos quais me prestareis homenagem, tudo quanto possuo no Limousin, Quercy e Périgord; e, mais tarde, se Afonso de Poitiers morrer sem filhos, podereis, nas mesmas condições de vassalagem, tomar posse da Saintonge e de Agenais”. Esta proposta espantou os conselheiros do rei, que lhe perguntaram que finalidade tinha ele em vista. E o santo respondeu: “Quero despertar o amor entre os meus filhos e os dele, pois são primos coirmãos”.

O surpreendente acordo foi criticado não só pelos contemporâneos, mas mesmo por muitos historiadores até os nossos dias. Para o compreendermos, devemos colocar-nos nas perspectivas do tempo, em que prestar homenagem por uma terra era algo extremamente grave, e em que um suserano da estatura do rei da França exercia uma autoridade fiscalizadora sobre os feudos do seu vassalo. Deixava de haver uma só polegada de solo francês que o rei da Inglaterra ocupasse como soberanos independente; a Normandia e todo o vale do Loire voltavam com pleno direito para a França, e essa Guyenne longínqua, que, na prática, seria difícil conquistar, entrava na jurisdição francesa, a tal ponto que Bordeaux devia submeter-se ao tribunal de apelação de Paris. Em 4 de dezembro de 1259, no pomar real – atualmente Place Dauphine -, o rei da Inglaterra, de cabeça descoberta, sem manto, sem cinto e sem esporas, ajoelhou-se diante do rei da França e, com a sua mão pousada sobre a dele, jurou-lhe fé e lealdade. Obedecendo a um propósito cristão, São Luís não prejudicara a França, e a prova foi dada pelos próprios ingleses, que manifestaram uma grande cólera: “É um ato que ultrapassa todos os limites do bom senso!”, exclamou John Peckham, arcebispo de Canterbury.

Seja como for, gestos como esse conferiam ao rei toda a sua grandeza e calavam fundo na opinião geral. Num tempo em que as forças morais tinham na política das nações uma importância que hoje perderam, São Luís era venerado por todos porque era verdadeiramente cristão. Prova disso foi o papel de árbitro internacional, de “sire do século”, que teve de desempenhar, um papel perfeitamente análogo àquele que, no século precedente e pela mesma razão, fora confiado a São Bernardo, mas infinitamente mais decisivo, em certo sentido, do que o desempenhado por certos papas, como III, visto que não era como detentor de uma autoridade específica, de um poder de condenar e obrigar, que São Luís devia agir, mas unicamente em virtude da sua sabedoria em Deus. Assim, vemo-lo sucessivamente regular a sucessão do Hainaut e de Flandres, absolutamente indiferente aos interesses pessoais de seu irmão Carlos de Anjou, e resolver também a de Navarra, contra os interesses do seu futuro genro, Thibaut V da Champagne. Entre o conde de Chalon e seu filho, o conde da Borgonha, entre a própria Borgonha e a Champagne, entre Henrique de Luxemburgo e Thibaut de Bar, foi ele, sempre ele, quem interveio, sem que ninguém desconfiasse da retidão das suas intenções. Aos conselheiros que lhe sugeriam que deixasse os vassalos e vizinhos digladiarem-se entre si, respondia, indignado, que, se agisse assim, “ganharia o ódio de Deus!” Foi por vezes chamado a intervir mesmo na política interna de alguns Estados estrangeiros, como, por exemplo, no conflito que, em 1258, opôs os altos barões ingleses ao seu rei, e em que São Luís condenou e – de um modo talvez sumário e pouco diplomático – rejeitou como injustas as Provisões de Oxford; ou ainda na política italiana, quando quis impedir seu irmão Carlos de Anjou de aceitar a coroa da Sicília e, não o tendo conseguido, se recusou a enviar as suas tropas para que ocupassem o perigoso reino.

A Cruzada seria o coroamento desta política cristã. Se, tentada por duas vezes, foi um fracasso, a culpa foi unicamente da falta de preparação e da temeridade de São Luís? Ou não terá sido de todo o mundo cristão, incluído o papado, que não lhe deu a necessária ajuda? Essas duas expedições, admiráveis sob tantos aspectos, marcaram o ponto, o único ponto em que a santidade de São Luís, fazendo-o deixar o chão da realidade, o arrastou para o sonho e para a falta de medida. Poderíamos talvez censurá-lo com razão, se o heroísmo que demonstrou na sua cruzada do Egito, e a beleza sublime da sua morte em Túnis, não tivessem dado ao seu retrato um toque supremo de grandeza cristã.

Assim foi Luís de Poissy (durante toda a vida, gostou de chamar-se assim, porque foi em Poissy que recebeu o batismo), rei da França e testemunha do homem diante do Pai. Não tenhamos dúvidas: em qualquer condição em que se tivesse encontrado pelo nascimento, teria sido aquilo que acabamos de ver: um cristão perfeito, um justo segundo o coração de Cristo, um santo. A Providência fez com que, no posto que ocupou, a sua figura fosse especialmente significativa e luminosa. Reconhecemos nele o mais completo exemplo do que a fé cristã – essa característica dominante da Idade Média – podia fazer de um homem, quando ele se submetia inteiramente às exigências dessa fé e, por isso mesmo, atingia o ápice da condição humana.

(Daniel-Rops, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante, págs 325 a 336)

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2 Responses to Um cristão leigo: São Luís

  1. Luiz Alves de Lima, sdb says:

    Li quase devorando essa biografia de São Luiz, rei de França, escrita por Le Goff. Genial. Ouvi dizer que, se não houvesse o processo de canonização desse santo rei francês, bastaria o livraço de Le Goff (quase 800 páginas) para canonizar esse meu insigne protetor, pois, meu onomástico é em seu dia. Luiz Alves de Lima, sdb.

  2. Luiz Fernando says:

    Obrigado por nos presentear com este texto! É sempre agradável ler Daniel Rops.

    Lembro que o medievalista francês Jacques Le Goff escreveu uma biografia sobre São Luís, fruto de quinze anos de estudos. No site da UFF há uma resenha do livro: http://www.historia.uff.br/tempo/resenhas/res11-1.pdf

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