Aspectos do pensamento jurídico de Santo Tomás de Aquino
22 janeiro, 2014 3 Comentários
Igreja Dominicana em Friesach, Áustria, altar principal, Tomás de Aquino
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Por Victor Emanuel Vilela Barbuy
Como assinala o Professor Mário Curtis Giordani, embora não tendo sido um jurista nem tido a formação que caberia a um jurista, Santo Tomás foi um filósofo do Direito, ocupando mesmo “lugar de relevo na História da Filosofia do Direito”. Nós outros, por nossa vez, afirmamos não só que o Angélico Doutor ocupa lugar de destaque na história do pensamento jusfilosófico, mas que representa o maior dentre todos os filósofos do Direito, posto que nenhum outro teólogo, filósofo ou jusfilósofo jamais formulou tão magnífica doutrina a respeito da Justiça, da Lei, do Direito Natural e do Direito Positivo quanto o Príncipe dos Doutores da Igreja.
O pensamento jusnaturalista clássico, ou tradicional, que se assenta na tradição constituída pelos filósofos da Hélade, pelos jurisconsultos romanos e pelos teólogos e canonistas da Cristandade, tem o seu inegável apogeu na obra do Aquinate, tão ou mais viva e necessária hoje do que na Europa da décima terceira centúria.
O Direito Natural, que tem seu fundamento metafísico último em Deus, o Sumo Bem, Princípio e Fim de todas as coisas, repousa em um critério objetivo de justiça, se constituindo em um conjunto de normas inatas na natureza humana, pelas quais o homem se dirige, com o objetivo de agir retamente. Como preleciona o Professor Alexandre Corrêa, a razão conhece os preceitos do Direito Natural, intuitivamente, sendo ele, neste sentido, racional. Porém, consoante faz salientar o eminente jurista, filósofo e jusfilósofo patrício, depende o Direito Natural, “no travejamento dos seus princípios, dos dados que ministra a experiência e, como tal, é experimental”.
O Direito Natural se divide em duas partes, uma universal e imutável e a outra variável. A primeira parte diz respeito aos primeiros princípios da Lei Natural, isto é, aos denominados princípios sinderéticos, ou seja, apreendidos pela Sindérese, expressão que designa o hábito intelectual dos primeiros princípios de ordem prática. Tais princípios podem ser reduzidos ao princípio segundo o qual devemos fazer o bem e evitar o mal. Já a segunda parte atina aos princípios secundários do Direito Natural, que derivam dos primeiros princípios, expressando suas necessidades imediatas.
Para o Aquinate, Deus, Criador e Regedor do Universo, dirige o homem por meio de sua Providência, o instruindo pela Lei. Esta se divide em Lei Eterna, Lei Natural e Lei Divina Positiva, sem falar na Lei Humana Positiva, ou, simplesmente, Lei Humana, que é a ordenação da razão para o Bem Comum, promulgada por aquele que tem o encargo da comunidade perfeita.
A Lei Eterna, cuja existência é demonstrada pelo Doutor Comum na Suma Teológica, nada mais é que a razão da divina sabedoria enquanto rege o Universo, dirigindo todos os atos e movimentos.
A Lei Natural, por seu turno, é a participação da Lei Eterna na criatura racional. Isto porque, consoante preleciona o Aquinate, “entre todas as criaturas, a racional está sujeita à Divina Providência de modo mais excelente”, posto que participa ela própria da Providência, provendo a si e às demais.
Portanto participa [o ente humano] da razão eterna, donde tira a sua inclinação natural para o acto e o fim devidos. E a essa participação da lei eterna pela criatura racional se dá o nome de lei natural. Por isso, depois do Salmista ter dito – Sacrificai sacrifício de justiça – continua, para como que responder aos que perguntam quais sejam as obras da justiça: Muitos dizem – quem nos patenteará os bens? A cuja pergunta dá a resposta: Gravado está, Senhor, sobre nós o lume do teu rosto, querendo assim dizer que o lume da razão natural, pelo qual discernimos o bem e o mal, e que pertence à lei natural, não é senão a impressão em nós do lume divino. Por onde é claro, que a lei natural não é mais do que a participação da lei eterna pela criatura racional.
Isto posto, cumpre ressaltar que a existência da Lei Natural, fundamentadora do Direito Natural, fora reconhecida já na Antiguidade. Aristóteles, com efeito, na Retórica, ao tratar da divisão das leis, assim afirma:
A lei particular é aquela que cada agregado de homens estabelece em relação aos seus membros, e tais leis se dividem em leis não escritas e em leis escritas. A lei comum é aquela que existe conforme à natureza. Com efeito, há um justo e um injusto, comuns pela natureza, que todo o mundo reconhece por uma como adivinhação, mesmo sem nenhuma comunicação ou convenção mútuas.
Mais tarde, em Roma, Cícero assim se exprimiria, na obra De Legibus:
Se a vontade dos povos, os decretos dos chefes, as sentenças dos juízes, constituíssem o direito, então seriam de direito o latrocínio, o adultério, a falsificação dos testamentos, desde que fossem aprovados pelo sufrágio e beneplácito das massas. Se fosse tão grande o poder das sentença se das ordens dos insensatos, que estes chegassem ao ponto de alterar, com suas deliberações, a natureza das coisas, por que motivo não poderiam os mesmos decidir que o que é mau e pernicioso se considerasse bom e salutar? Ou por que motivo a lei, podendo transformar algo injusto em direito, não poderia transformar o mal em bem? É que, para distinguir as leis boas das más, outra norma não temos senão a da natureza. Não só o justo e o injusto, mas também tudo o que é honesto e o que é torpe, se discerne pela natureza. Esta nos deu um senso comum, que ela insculpiu em nosso espírito, para que identifiquemos a honestidade com a virtude e a torpeza com o vício. E pensar que isso depende da opinião de cada um, e não da natureza, é coisa de louco.
Quanto à Lei Divina Positiva, é aquela que o próprio Deus promulga por meio de uma intervenção direta na História. É o caso do Decálogo, que Deus confiou a Moisés, e da Lei do Evangelho, ou Lei de Cristo.
A necessidade da Lei Divina Positiva decorre, segundo Santo Tomás, das razões seguintes:
I – Como é o ente humano ordenado “ao fim da beatitude eterna, excedente à capacidade natural das suas faculdades”, é necessário, pois, que, “além da lei natural e humana, seja também dirigido ao seu fim por uma lei imposta por Deus”;
II – o homem, cujo juízo é incerto, sobretudo no que diz respeito às coisas contingentes e particulares, para poder, sem dúvida nenhuma, “saber o que deve fazer e o que deve evitar”, necessita dirigir “os seus actos próprios pela lei estabelecida por Deus, que sabe não poder errar”;
III – não podendo a Lei Humana coibir e ordenar os atos internos da pessoa humana, é mister que, para isto, sobrevenha a Lei Divina Positiva;
IV – porque, como aduz Santo Agostinho, a Lei Humana não tem o poder de punir ou de proibir a totalidade das malfeitorias. Isto porque, caso desejasse eliminar todos os males, “haveria consequentemente de impedir muitos bens, impedindo assim a utilidade do bem comum, necessário ao comércio humano”. Destarte, “a fim de nenhum mal poder ficar sem ser proibido e permanecer impune, é necessário sobrevir a lei divina, que proíbe todos os pecados”.
Já a Lei Humana Positiva não é senão, como restou dito, a ordenação da razão para o Bem Comum, promulgada pela autoridade competente. Isto porque, segundo preleciona o Angélico Doutor, “assim como a razão especulativa, de princípios indemonstráveis e evidentes tira as conclusões das diversas ciências, cujo conhecimento não existe em nós naturalmente”, sendo, porém, descobertos por obra da razão; assim também, “dos preceitos da lei natural, como de princípios gerais e indemonstráveis, necessariamente a razão humana há de proceder a certas disposições mais particulares”. E tais disposições, descobertas pela razão humana, observadas as demais condições pertencentes à essência da Lei, denominam-se leis humanas.
Cumpre assinalar que, segundo o Aquinate, as leis humanas devem ser conformes ao Direito Natural, não o violando em ponto algum, sob pena de iniquidade, e as leis iníquas não são leis, mas antes corrupções da lei, não podendo ter força para obrigar ninguém:
A lei escrita, assim como não dá força ao direito natural, assim não lhe pode diminuir nem tirar a força, pois, não pode a vontade do homem mudar-lhe a natureza. E, portanto, se a lei escrita contiver alguma disposição contrária ao direito natural, será injusta, nem tem força para obrigar. Pois o direito positivo se aplica quanto ao direito natural não importa que se proceda de um ou de outro modo, como já provamos [q. 57, art. 2, resp. à 2ª objeção]. E, por isso, tais leis escritas não se chamam leis, mas, antes, corrupções da lei, como já dissemos [Iª parte da IIaª parte., q. 95, art. 2]. E, portanto, não se deve julgar de acordo com elas.
Por derradeiro, é imperioso destacar que o Direito Natural por si só não basta como regra de vida, sendo necessária sua complementação pelo Direito Positivo. A este cabe a concretização dos princípios do Direito Natural, aplicando as máximas deste às particularidades da vida em Sociedade. E deve fazê-lo levando em conta as circunstâncias de tempo e de lugar, motivo pelo qual deve possuir caráter eminentemente histórico. Daí concordarmos com o Professor Alexandre Corrêa, quando este sustenta que as ideias da Escola Histórica, especialmente com a forma que lhe imprimiu o Conde Joseph De Maistre, “são admissíveis, como complemento à verdadeira teoria do Direito Natural”.
Seja esta a nossa humilde contribuição ao estudo da doutrina daquele que é chamado, com justiça, “o mais santo dos sábios e o mais sábio dos santos”. Que ela tenha, na falta de outros méritos, aquele de fazer com que mais pessoas, particularmente nos meios jurídicos, se interessem pela portentosa obra do Aquinate, de que não pudemos traçar senão um palidíssimo esboço. Como salienta o filósofo francês Étienne Gilson, a “infinita riqueza e maravilhosa organização” da doutrina tomista se revelam tão somente “no curso de um estudo direto”, e, como ressalta Michel Villey, os juristas só teriam a ganhar caso se libertassem do preconceito que ainda envolve o nome e a obra do Angélico Doutor. Convidamos, pois, aqueles que ainda não conhecem a obra do magno Mestre da Escolástica para que, vencendo o preconceito que por ventura tiverem, se debrucem sobre ela. Aqueles que o fizerem nada perderão.
Muito interessante este artigo. Quando fui estudante de teologia no então Instituto Teológico Monte das Oliveiras, atual Instituto Evangélico Moriá Logos, aprendi muito sobre este assunto. Continue assim.
São Tomás, com a precisão infinita do Senhor Deus, foi um dos escolhidos desde o nascimento (acredito eu) para iluminação dos seus semelhantes.
Então, este homem maravilhoso troca-se por suas obras. A luz de sua vela é de inquestionável valor para todos nós, viandantes que somos.
O que mais poderemos dizer: Tentemos, em nossas vidas agitadas deste mundo atual, debruçar-mo-nos todos os dias, no entendimento do Santo. Grandes serão os progressos dos que assim o podem ou querem fazer.
Heitor
A RESUMO DIRIA : AS LEIS DOS HOMENS , NÃO SÃO AS LEIS DE DEUS .
RESTA A DESEJAR.