[OFF] Os deuses gregos e o problema do conhecimento e da vontade

Caravaggio (1573-1610), Amor Vincet Omnia (O amor vence tudo)(1602-03)
Representação do deus Eros

Quando os filósofos gregos utilizavam a palavra “deus”, também eles tinham em mente uma causa que era mais do que uma simples coisa, daí a dificuldade que tinham em encontrar, para o  problema da ordem no mundo, uma solução simples e abrangente. Como filósofos, até mesmo os primeiros pensadores gregos nos parecem representantes perfeitos de um espírito verdadeiramente científico. Para eles a realidade era essencialmente o que podiam tocar e ver e a sua interrogação fundamental sobre ela era: o que é? À pergunta: “o que é o Oceano?”, a resposta “É um deus”, simplesmente não faz sentido. Pelo contrário, à pergunta: “o que é o mundo?”, a fórmula “Todas as coisas estão cheias de deuses” não poderá servir de resposta. Tomando o mundo como uma dada realidade, os filósofos gregos simplesmente se interrogaram sobre qual era a sua “natureza”, ou seja, qual era a substância essencial de todas as coisas e o princípio oculto de todas as suas ações. Seria a água, o ar, o fogo ou o Indeterminado? Ou talvez fosse um espírito, um pensamento, uma Idéia, uma lei? Qualquer que fosse a resposta que dessem ao seu problema, os filósofos gregos encontravam-se sempre confrontados com a natureza como um fato auto-explicativo. “Nada pode surgir a partir do que não existe”, diz Demócrito, “nem extinguir-se no que não existe”. Se tivesse sido possível à natureza não ser, ela nunca teria sido. Ora, a natureza existe; por isso sempre existiu, e sempre existirá. Uma natureza assim entendida era tão necessária e eterna que, quando um filósofo grego era levado à conclusão de que este nosso mundo tinha de ter tido um princípio e estava destinado um dia a chegar ao seu fim, ele conceberia imediatamente o começo e o fim deste mundo como apenas dois momentos num ciclo eterno de acontecimentos sempre recorrentes. Tal como diz Simplício: “Aqueles que imaginaram mundos incontáveis, por exemplo, Anaximandro, Leucipo, Demócrito e mais tarde Epicuro defenderam que nasciam e morriam ad infinitum, alguns nascendo sempre e outros morrendo”. Se não pudermos considerar esta afirmação como uma resposta cientificamente provada ao problema da natureza, ela é pelo menos a expressão filosoficamente adequada para o que deveria ser uma explicação científica exaustiva do mundo da natureza. Este tipo de explicação é insuficiente para constituir em si mesma uma resposta aos problemas específicos da religião.

Se tais problemas, sem possibilidade de resposta científica, devem ou não ser colocados é uma questão legítima, mas não é presentemente a nossa questão. O que nos interessa neste momento são os fatos históricos. E um deles é o fato de os próprios gregos terem levantado constantemente problemas religiosos específicos; um outro é que eles deram a estes problemas respostas religiosas específicas; e o terceiro fato é o de que os maiores filósofos gregos concluíram que era muito difícil, para não dizer impossível, conciliar as interpretações religiosas do mundo com a sua interpretação filosófica.

O único elemento comum a estas duas concepções da natureza era uma espécie de sentimento geral de que, por alguma razão, as coisas aconteciam, de que aquilo que acontecia não podia eventualmente deixar de acontecer. Daí a visão constantemente apresentada da história da filosofia grega como a racionalização progressiva da religião grega primitiva. Contudo, colocam-se algumas dificuldades. As noções religiosas de Sorte e Destino são especificamente distintas da noção filosófica de necessidade. O fato de todos os homens, incluindo Heitor, terem de morrer, é uma lei da natureza, e como tal pertence à ordem filosófica da necessidade. O fato de Heitor ter de morrer numa altura específica e sob determinadas circunstâncias, é um acontecimento de uma vida humana específica. Por trás da necessidade há uma lei; por trás da Sorte há uma vontade.

A mesma relação que prevalece entre a necessidade e a sorte, prevalece também entre a noção filosófica da causa e a concepção grega dos deuses. Uma causa primeira, ou princípio, é uma explicação universalmente válida para tudo o que existe, existiu ou virá a existir. Como objeto de conhecimento científico ou filosófico, o homem é apenas uma entre as incontáveis coisas que podem ser objeto de observação empírica e de explicação racional. Quando olha para a sua vida como cientista ou filósofo, qualquer homem considera os sucessivos acontecimentos, inclusive a previsão da sua própria morte, como outras tantas consequências de causas impessoais. Mas acontece que cada homem está pessoalmente familiarizado com causas muito diferentes das científicas ou filosóficas. O homem conhece-se a si próprio. E porque se conhece a si próprio pode afirmar “eu sou”. E porque conhece outras coisas para além de si próprio, pode dizer dessas coisas que “elas são”. Na realidade, um fato tremendamente importante, uma vez que, tanto quanto sabemos, é através do conhecimento humano e unicamente através dele que o mundo pode ter a consciência da sua existência. Daí que para os filósofos e para os cientistas de todos os tempos surja uma primeira dificuldade, não sem importância: desde que o homem como ser inteligente faz parte do mundo, como explicar a natureza sem atribuir ao seu primeiro princípio o conhecimento ou qualquer coisa que, por incluí-lo virtualmente, lhe é efetivamente superior?

Desta primeira presença do conhecimento no mundo surge uma nova dificuldade ainda mais complexa. Como ser inteligente, o homem é capaz de distinguir as coisas, conhecer as suas naturezas específicas e consequentemente determinar a sua própria atitude perante elas segundo o conhecimento que adquiriu sobre o que são. Ora, não ser determinado pelas coisas mas ser regulado pelo conhecimento delas é precisamente aquilo a que chamamos ser livre. Introduzindo no mundo uma certa possibilidade de escolha, o conhecimento dá origem a uma espécie curiosa de ser que não só é, ou existe, como todo o resto, como também é ou existe por si próprio; e apenas para o qual todo o resto surge como um conjunto de coisas realmente existentes. Um tal ser – e devo lembrar que a sua existência é um fato observável – tem de ter consciência da situação excepcional que ocupa no universo. Em certo sentido, é apenas uma parte do todo e, como tal, completamente submetido às leis do todo. Noutro sentido, ele próprio é um todo, porque é um centro original de reações espontâneas e de decisões livres. Chamamos a esse ser homem; afirmamos que, uma vez que o homem dirige os seus atos de acordo com o seu conhecimento, ele tem uma vontade. Como causa, uma vontade humana é muito pouco parecida com qualquer outro tipo de causa conhecida, porque é a única a ser confrontada com diversas opções possíveis e a constituir uma força original de autodeterminação. O problema mais difícil para a filosofia e para a ciência é, sem dúvida, explicar a existência de vontade humana no mundo sem atribuir ao primeiro princípio uma vontade ou algo que, por incluí-la virtualmente, lhe seja de fato superior.

Compreender essa questão significa também encontrar a origem profundamente oculta da mitologia grega, e portanto da religião grega. Os deuses gregos são a expressão crua e também reveladora desta convicção absoluta de que, já que o homem é alguém, e não apenas algo, a explicação última para o que lhe acontece deve ser responsabilidade de alguém e não apenas de alguma coisa. Como caudal de água correndo entre margens lamacentas, Skamandros é apenas um rio, ou seja, uma coisa; mas como rio troiano que se opõe audaciosamente à vontade do ágil Aquiles, só pode ser uma coisa. Então Skamandros tem de aparecer sob a forma de um homem, ou melhor de um super-homem, que é o mesmo que dizer um deus. A mitologia não é o primeiro passo no caminho para a verdadeira filosofia. De fato, nem se trata de uma filosofia. A mitologia é um primeiro passo do caminho para a verdadeira religião; é religiosa em si mesma. A filosofia grega não pode ter emergido da mitologia grega por qualquer processo de racionalização, porque a filosofia grega constituía uma tentativa racional de compreender o mundo como um mundo de coisas, enquanto a mitologia grega expressava a firme decisão do homem de não ser deixado sozinho, de não ser a única pessoa num mundo de coisas surdas e mudas.

Étienne Gilson, Deus e a Filosofia, Edições 70, pp 28-31

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