Tomás, o antropólogo
31 março, 2011 1 Comentário
Por Chesterton
É pena que a palavra antropologia se tenha degenerado até ao ponto de só estudar os antropóides. E agora está irremediavelmente ligada a disputas sem interesse, entre professores de pré-história (em mais de um sentido), para que se saiba se uma lasca de pedra é dente de homem ou de macaco, questão que por vezes vem a ser resolvida como naquele famoso caso em que se viu tratar-se do dente de um porco. Está perfeitamente certo que haja uma ciência puramente física de tais coisas, mas o nome empregado em geral poderia muito bem, por analogia, ter sido aplicado a coisas não só mais vastas e mais profundas mas também mais apropriadas.
Assim como na América os novos humanistas acusaram os velhos humanistas de o seu humanitarismo ter se concentrado, em grande parte, em coisas que não são especialmente humanas, como condições físicas, apetites, necessidades econômicas, ambiente etc., assim , na prática, os que se chamam antropólogos têm de limitar o seu espírito às coisas materiais que não são notavelmente antropológicas. Têm de pesquisar através da história e da pré-história, em busca de algo que não é certamente o homo sapiens, mas é sempre, de fato, considerado simius insipens. O homo sapiens só pode considerar-se em relação com a sapientia, e só um livro como o de Santo Tomás é, em verdade, dedicado à idéia intrínseca de sapientia. Em uma palavra, devia haver um estudo real chamado antropologia que correspondesse à teologia. Neste sentido, Santo Tomás de Aquino é, talvez mais que qualquer outra coisa, um grande antropólogo.
A todos esses excelentes e eminentes homens de ciência que andam empenhados no estudo real da humanidade, na sua relação com a biologia, peço desculpa pelas palavras de abertura deste capítulo. Imagino todavia que eles hão de ser os primeiros a reconhecer que houve um desejo muito desproporcionado, na ciência dos vulgarizadores, em converter o estudo de seres humanos em estudo de selvagens. A selvageria não é história; é o começo ou o fim da história.
Desconfio que os maiores cientistas haveriam de concordar que muitos professores se perderam assim no deserto ou nos matagais, e que, querendo estudar a antropologia, nada mais conseguiram que a antropofagia. Não obstante, tenho razões particulares para fazer preceder esta sugestão de uma antropologia mais elevada, por um pedido de desculpa a certos biólogos genuínos, que parecem estar incluídos, mas com certeza não estão, num protesto contra a ciência popular barata. Porque a primeira coisa que se deve dizer de Santo Tomás como antropólogo é que ele é, em verdade, notavelmente semelhante à melhor espécie dos antropólogos biológicos modernos, a espécie dos que se consideram a si mesmos agnósticos. Este ponto é um fato histórico tão importante e decisivo na história, que precisa realmente ser recordado e fixado.
Santo Tomás de Aquino assemelha-se, muito, ao grande professor Huxley, o agnóstico inventor da palavra agnosticismo. Assemelha-se na sua maneira de iniciar o argumento, e é diferente de todos os demais antecessores e sucessores, até à época huxleiana. Ele adota quase literalmente a definição do método agnóstico de Huxley: “seguir a razão até onde ela for”. Mas aonde ela vai? Eis a questão. É ele que nos lega esta afirmação quase surpreendentemente moderna ou materialista: “tudo o que está na inteligência passou pelos sentidos”. Foi por aqui que ele começou, como qualquer cientista moderno, ou antes, como qualquer materialista dos nossos dias, que mal pode chamar-se agora homem de ciência; exatamente o extremo oposto ao do simples místico. Os platônicos, ou pelo menos os neoplatônicos, tendiam todos à opinião de que o espírito se iluminava inteiramente de dentro; Santo Tomás insistiu em que ele era iluminado por cinco janelas, as que chamamos as janelas dos sentidos. Mas queria que a luz exterior fosse iluminar a que já estava dentro. Queria estudar a natureza do homem, e não meramente a dos musgos e cogumelos que podia ver da janela, e que apreciava apenas como primeira experiência esclarecedora do homem. E, partindo deste ponto, continua a escalar a casa do homem, degrau por degrau, andar por andar, até chegar à torre mais elevada, e descobrir a mais vasta visão.
Em outras palavras, Santo Tomás é um antropólogo, com uma teoria completa do homem, certa ou errônea, mas uma teoria. Ora, os antropólogos modernos, que se consideram a si mesmos agnósticos, falharam inteiramente como antropólogos. Dadas as suas limitações, não puderam alcançar uma visão completa do homem nem, muito menos, uma visão completa da natureza. Começaram por pôr de lado o que chamaram o incognoscível. Se pudéssemos, em verdade, tomar o incognoscível no sentido de perfeição última, quase se compreenderia ainda essa incompreensibilidade. Mas logo se verificou que todas as coisas que se tornaram incognoscíveis eram exatamente as que o homem tinha mais necessidade de conhecer. É preciso saber se o homem é responsável ou irresponsável, perfeito ou imperfeito, perfectível ou imperfectível, mortal ou imortal, escravo ou livre, não para compreendermos a Deus, mas para compreendermos o homem. Nenhum sistema que deixe estas coisas sob a nuvem da dúvida religiosa pode pretender-se uma ciência do homem: encontrar-se-ia tão longe da teologia como da antropologia.
Tem o homem livre-arbítrio, ou a sua certeza de que pode escolher é uma ilusão? Possui ele uma consciência? Tem ela alguma autoridade, ou é somente o preconceito do passado tribal? Há alguma esperança real de se chegar a resolver estas coisas por meio da razão humana, e terá ela alguma autoridade? Deve-se considerar a morte o fim de tudo, e o auxílio milagroso como possível? Ora, é inteiramente disparatado dizer que estas coisas são remotamente incognoscíveis, como a distinção entre os Querubins e os Serafins ou a processão do Espírito Santo. Talvez os escolásticos tenham ido demasiado longe, além dos justos limites, na tentativa de aprofundar o estudo acerca dos Querubins e Serafins. Mas, quando perguntavam se um homem pode escolher, ou se terá de morrer, faziam perguntas naturais de história natural, precisamente como a de se um gato pode arranhar, ou a de se um cão pode farejar.
Nada do que se chame a si mesmo ciência completa do homem pode evitá-las. E os grandes agnósticos as evitaram.
G. K. Chesterton, Santo Tomás de Aquino
em quais livros São Tomas, coloca seus pensamentos antropológicos.