Doutrina sobre o mal

Michelangelo Buonarroti (1475-1564), A Queda e a Expulsão do Paraíso, Capela Sistina (detalhe)

Obs: Por causa das limitações de edição do blog, inseri as notas no próprio texto, sempre no formato [Nota: “texto em itálico”].

Por  Paulo Faitanin

1. Ser e Participação
Segundo Tomás de Aquino, não existe maior mal, para a natureza humana, do que se privar, voluntária e conscientemente, da companhia de Deus. Este é o mal moral (mors, em latim significa costume, hábito), que se dá no contexto da liberdade e da responsabilidade humanas, como conseqüência de ações assentadas nos juízos da razão e na anuência da vontade.
O mal moral priva o homem da ordem ao fim próprio (conversão a Deus), dispõe-no contra o Criador e, também, contra a própria natureza humana, no mesmo instante em que se converte às criaturas. Eis o pecado (peccatum), que é um mal de culpa (malum culpae), ação que o homem comete deliberadamente contra Deus (por exemplo, a blasfêmia), contra si mesmo (por exemplo, o suicídio) ou outrem (por exemplo, o homicídio).

[Nota: Para a moral cristã, a ação que o homem pratica livremente contra um ser inferior na ordem da conservação de sua natureza não será um mal (como, por exemplo, matar uma ave para alimentar a família), pois estes bens estão dispostos para ordenadamente manter a vida do homem. Mas a disposição humana dos bens naturais, vegetais e animais poderá geral omal moral, se o homem agir por desordem de sua concupiscência, por falta da ordem devida ao fim próprio: a gula, por exemplo, é mal moral e nasce dessa desordem, enquanto pode significar dispor mal de um bem natural, que é o alimento, no comer pelo comer; a avareza é mal moral se o homem dispuser de qualquer bem natural desordenadamente com a finalidade do enriquecimento ilícito. E o mesmo se diga de qualquer vício humano]

Propriamente, não existirá mal moral que não seja contra Deus, que não nos afaste d’Ele e não deixe seqüelas na natureza humana. Neste horizonte, o mal de pena (malum poenae) será o mal físico que o homem sofre por conseqüência do pecado. Na perspectiva cristã, até pode acontecer alguém padecer mal físico sem que isto seja conseqüência do mal moral pessoal, ainda que o seja do mal da culpa original: o exemplo bíblico do sofrimento de Jó ilustra o caso. Contudo, nenhum exemplo elucida mais que o de Cristo, que, sendo isento do mal de culpa (pecado original e pessoal), sofreu profundamente o mal de pena (calvário, crucifixão e morte).
Seguindo de perto Santo Tomás, observamos que, para perceber as marcas de Deus no mundo, convém para a filosofia partir, mediante um olhar metafísico atento, dos diversos graus de perfeição representados na natureza, segundo uma ordem hierárquica, até alcançar a existência de Deus, perfeição das perfeições – com a importante ressalva de que conhecer a existência de Deus, a partir da razão, não é o mesmo que conhecer a Sua essência, pois esta, como adverte o Doutor Angélico, é incognoscível para a razão humana.

[Nota: Por isto, além de levar a cabo, na Suma Teológica, a demonstração da existência de Deus nas famosas cinco vias, Santo Tomás destaca o seguinte: é impossível para a criatura racional conhecer, pelas suas próprias capacidades intelectivas, a essência do Sumo Ser que é Deus (Suma Teológica I, q. 12, a. 4)]

Feita esta advertência fundamental, salientamos o seguinte: cada ente encerra, em sua estrutura metafísica, o ato de ser que, como lei e princípio, estabelece e rege a perfeição de cada criatura, por cujo ato é o que é, ou vem a ser o que é. E, porque o ato de ser é o que faz cada coisa nascer, emergir e aparecer no que é, ele se revela no ser de cada criatura como natureza. A existência de diversas naturezas supõe a diversidade dos modos como o ato de ser se realiza nas criaturas. Essa diversidade se dá segundo a intensidade do ato de ser: quanto maior for a sua intensidade, maior será a sua participação no Ato de Ser divino. As diversas perfeições divinas – ser, bem, amor, etc. – são manifestadas e se representam na realidade pelos distintos modos como o ato de ser se realiza. Neste contexto, o bem será a perfeição divina que se manifesta na estrutura metafísica de cada ente, de acordo com a perfeição conveniente que desvenda a sua natureza. Assim, quantas sejam as criaturas, tantos serão os graus de ser e de bondade comunicados a elas por Deus, na ordem da Criação.
Cada criatura representará a perfeição divina a modo de vestígio, ou seja, menos intensiva quanto ao ser – como as criaturas inanimadas e irracionais – ou a modo de imagem e semelhança, ou seja, mais intensiva no ser, como os seres humanos e os anjos.

[Nota: Dizemos que uma participação é menos intensiva em razão do ato de ser destas criaturas, na medida em que este participa menos do Ser divino e, consequentemente, não subsiste por si mesmo; e mais intensiva em razão do ato de ser que participa mais do Ser divino, o qual é subsistente por si mesmo]

Assim, nenhuma criatura se encontra, quanto à sua natureza, absolutamente privada da perfeição do bem divino. Contudo, a criatura espiritual é a que mais intensamente participa da bondade divina por sua natureza, e isto, na concepção cristã, revela que Deus a quis ter como mais digna de se aproximar d’Ele. Por isso, a dignidade…

[Nota: A dignidade se diz de algo em razão do grau de perfeição do ser. Não havendo grau de ser que supere a perfeição do ser de Deus, não haverá maior ofensa do que a que se dê contra a dignidade divina]

…da natureza humana será um valor em si mesmo, pois representa e aponta para o bem e o amor de Deus por ela. Quanto mais digna for a natureza, por revelar a perfeição que a aproxima de Deus, maior será a ofensa pela sua não-conversão (voluntária) a Ele. Para a doutrina da qual Santo Tomás de Aquino é uma das máximas expressões, a criatura espiritual ofende intensamente a Deus quando, por vontade livre, prefere as criaturas e pretere a Deus.
Em linhas gerais, para o corpus christianorum assim se explica metafisicamente a presença do mal no homem: privação do bem na natureza, na medida em que isto corresponda primeiramente a uma aversão a Deus e, secundariamente,uma aversão ao seu próprio ser, convertido de forma desordenada a bens menores e particulares, em detrimento do único Bem que o é por si mesmo. Longe d’Ele, será impossível para o homem aperfeiçoar-se, pois uma perfeição só se adquire em contato ou a partir do que é ontologicamente mais perfeito e possui mais entidade, como, por analogia, se pode dizer que, para esquentar uma coisa, é necessário colocá-la em contato com outra mais quente. Vejamos o ensinamento do Doutor Angélico na primeira questão do De Malo, que versa especificamente sobre a natureza do mal.
2. O Mal em Geral
De acordo com o Aquinate, o mal não é substância, ou seja, não é algo, embora aquilo a que sucede ser mau seja algo, uma vez que o mal o priva de um bem particular – como ser cego não é algo, ao passo que aquele a quem sucede ser cego é algo. Neste sentido, o mal se encontra no bem, mas não no Bem que é Ato Puro, Deus, mas em todo bem que seja uma mescla de ato e potência. Por isso, dirá o Aquinate que o bem é causa do mal, mas não por si, e sim por acidente (per accidens).
Em resposta às objeções de que Deus cria o mal – como atestam as Sagradas Escrituras em Isaías (45, 7) e Amós (3, 6) -, o Angélico afirma que Deus é causa do chamado mal de pena, pois quando castiga não visa ao mal daquele que é castigado, mas age com o intuito de imprimir a ordem da justiça nas coisas. Deus não cria o mal de culpa, pois não pode ser culpado pela irresponsabilidade dos homens. Contudo, permite o mal de pena na natureza humana, na medida em que se extraia dele um bem maior. Vejamos, de acordo com Santo Tomás, o que seja na natureza racional a distinção entre mal de pena e mal de culpa. O mal de culpa se dá pelos atos desordenados a partir do apetite racional que é a vontade humana, e o de pena é sempre contrário à vontade (pois é comum a toda pena ser contrária à vontade daquele a quem é imposta). Para o homem, o maior será o mal de culpa, pois provém das suas ações livres que se opõem aos bens espirituais da graça e da glória e, consequentemente, a Deus, fonte da graça e Senhor da glória. Por sua vez, o mal de pena se refere aos males corporais.

Fonte: Santo Tomás de Aquino, Sobre o Mal, Ed. Sétimo Selo, 2005

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