A Lei Moral 4: Há em nós uma lei natural?

Faith and Reason united, with St Thomas Aquinas teaching in the background and the inscription: “divinarum veritatum splendor, animo exceptus, ipsam juvat intelligentiam“, from Leo XIII’s encyclical Aeterni Patris (13). Painting by German painter Ludwig Seitz (1844–1908), Galleria dei Candelabri, Vatican (clique para ampliar).
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Parece que não há em nós uma lei natural:

1. Com efeito, o homem é suficientemente governado pela lei eterna: diz Agostinho que “a lei eterna é aquela pela qual é justo que todas as coisas sejam ordenadíssimas”. Ora, a natureza não se excede nas coisas supérfluas, como não falta nas necessárias. Logo, não há uma lei natural para o homem.

2. Além disso, pela lei ordena-se o homem em seus atos para o fim, como acima se mostrou. Ora, a ordenação dos atos humanos para o fim não é pela natureza, como acontece nas criaturas irracionais, que só pelo apetite natural agem em razão do fim; mas age o homem por causa do fim por razão e vontade. Logo, não há uma lei natural para o homem.

3. Ademais, quanto mais é alguém livre, tanto menos é sob a lei. Ora, o homem é o mais livre de todos os animais, por causa do livre-arbítrio, que tem acima dos outros animais. Logo, como os outros animais não são sujeitos à lei natural, nem o homem é sujeito a alguma lei natural.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, sobre aquilo da Carta aos Romanos: “Como os gentios, que não têm a lei, fazem naturalmente aquelas coisas que são da lei”, diz a Glosa: “Mesmo que não tenham a lei escrita, têm, porém, a lei natural, pela qual qualquer um entende e é cônscio do que é bem e do que é mal”.

RESPONDO. Como acima foi dito, a lei, dado que é regra e medida, pode estar duplamente em algo: de um modo, como no que regula e mede, de outro, como no regulado e medido, porque enquanto participa algo da regra ou medida, assim é regulado e medido. Por isso, como todas as coisas que estão sujeitas à providência divina, são reguladas e medidas pela lei eterna, como se evidencia do que foi dito, é manifesto que todas participam, de algum modo, da lei eterna, enquanto por impressão dessa têm inclinações para os atos e fins próprios. Entre as demais, a criatura racional está sujeita à providência divina de um modo mais excelente, enquanto a mesma se torna participante da providência, provendo a si mesma e aos outros. Portanto, nela mesma é participada a razão eterna, por meio da qual tem a inclinação natural ao devido ato e fim. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural. Assim, ao dizer o salmista, “Sacrificai um sacrifício de justiça” (4, 6), acrescenta como que para os que buscam quais são as obras da justiça: “Muitos dizem: Quem nos mostra os bens?”, à qual questão responde, dizendo: “Foi assinalada sobre nós a luz de tua face, Senhor”, como se a luz da razão natural, pela qual discernimos o que é o bem e o mal, que pertence à lei natural, nada mais seja que a impressão da luz divina em nós. Daí se evidencia que a lei natural nada mais é que a participação da lei eterna na criatura racional*.

* Nota: O problema da lei natural é certamente aquele que, de toda a síntese tomista, é em nossos dias o mais mal compreendido, a um ponto tal que certos teólogos chegam a rejeitar a própria idéia de lei natural e de seu papel na salvação cristã. De igual modo, vale salientar alguns pontos nevrálgicos desse ensino para compreender o seu valor permanente. A idéia de lei natural se reveste de um conteúdo diferente de acordo com a natureza dos seres que se submetem à divina providência (lei eterna). A partir da idéia de participação, pode ocorrer participação na lei eterna de duas maneiras: seja de maneira material, como uma impressão recebida do alto, e que exprime o pensamento e o querer divinos. É de maneira analógica, portanto, que se pode falar de lei (ver a resposta 3 deste artigo). É o caso de todos os seres infra-humanos que realizam a lei eterna por seu determinismo, seus instintos, ou melhor, por suas “inclinações” (é a expressão preferida de Sto. Tomás), que os leva a agir de maneira própria de acordo com sua espécie. A lei de suas naturezas diversas, as quais eles não dominam, é chamada, na linguagem comum, empregando o plural, de “leis naturais”, sinônimo de leis físicas, químicas e biológicas, exprimindo um determinismo estrito, um dado objeto da ciência. O próprio homem, enquanto animal (no sentido genérico) traz em si tais inclinações naturais, mas tendo isto de específico, que as suas inclinações, que ele tem em comum como o mundo infra-humano, devem ser assumidas e reguladas por meio de sua razão e de sua liberdade.

No homem, como ser espiritual e dotado de razão, participa-se na lei eterna também de outra maneira, de uma maneira formal, ou seja, não mais como impressão recebida, mas segundo a própria formalidade da lei, isto é, autor e fonte de regulação. Assim, o homem é chamado a ser como sua própria providência, providência de si em delegação da Providência divina. Isto está de acordo, aliás, com o ensinamento da antropologia cristã, que vê no homem a imagem de Deus. O homem se conforma a essa responsabilidade de imagem de Deus, assumindo, por sua razão e por sua liberdade, a regulação ética de seus atos. Nele, a sua razão é como uma participação da luz divina, permitindo-lhe dirigir-se a si próprio, e discernindo o bem do mal. Nesse nível, não é mais simplesmente a participação nele impressa do querer divino, mas é a participação da luz do pensamento divino.

A desgraça é que, na seqüência, o pensamento moderno, principalmente depois de Descartes, reduziu o sentido da palavra “natureza” ao domínio material e corporal (o mundo infra-humano), de modo que o natural no homem designa a parte corporal de seu ser (res extensa), que é um dado puro contraposto a seu verdadeiro ser, que é o pensamento reflexivo (res cogitans) e sua liberdade. Do mesmo modo, falar de lei natural como norma moral seria o mesmo que atribuir às leis físicas e biológicas no homem uma função normativa, conseqüência que se encontra em nossos dias em uma certa mentalidade conservadora de homens da Igreja, um tanto quanto inquietos no que concerne à perspectiva de reconhecer à liberdade e à razão natural o lugar que Sto. Tomás lhes reservava em sua doutrina sobre a lei natural.

Dessa forma, essa derivação semântica da palavra “natureza” faz que, no momento atual, a linguagem tomista tradicional não cruze mais o discurso moderno, não mais ousando evocar a idéia de lei natural como sinônimo de lei moral. Felizmente, uma evolução mais recente do mundo, a sua socialização, em particular, implicando uma retomada de consciência do universalismo ético (sobretudo em matéria de justiça social e de desenvolvimento), manifesta-se por uma espécie de apela ético em prol do reconhecimento de exigências comuns a todos os homens.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Aquela razão procederia, se a lei natural fosse algo diverso da lei eterna. Não é, porém, senão uma participação dela, como foi dito.

2. Toda operação da razão e da vontade deriva em nós do que é segundo a natureza, como acima se mostrou; com efeito, todo raciocínio deriva de princípios naturais conhecidos, e todo apetite daquelas coisas que pertencem ao fim, deriva do apetite natural do fim último. E assim também é necessário que a primeira direção dos nossos atos para o fim se faça pela lei natural.

3. Também os animais irracionais participam da razão eterna a seu modo, como a criatura racional. Mas, porque a criatura racional dela participa intelectual e racionalmente, assim a participação da lei eterna na criatura racional propriamente se diz lei, pois a lei é algo da razão, como foi acima dito. Na criatura irracional, porém, não é participada racionalmente, por isso não pode ser dita lei, senão por semelhança.

Fonte: ST I-II, 91, 2

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